isto é meu
A frase que mata, dita a mim mesmo ou aos outros, sentida, vivida e exteriorizada é esta mesmo: “isto é meu!”. Começa aqui a desgraça…
A frase que mata, dita a mim mesmo ou aos outros, sentida, vivida e exteriorizada é esta mesmo: “isto é meu!”. Começa aqui a desgraça…
Sal de terra
Gostava de ser
cloreto de sódio!
Sal da terra
assim dizia Vieira.
Dar sabor,
metido,
ser solução.
Sem sal,
corrupção,
sem sal,
não há paladar.
Gostava de ser
cloreto de sódio.
Ião sódio,
ião cloreto.
Assim, sal,
me meto
no mundo.
Dissolvo-me,
confundo
mas não
vou ao fundo…
in Paiva, J. C., Quase poesia quase química (2012) (e-book). Lisboa, Sociedade Portuguesa de Química.
acessível aqui (porventura enriquecido com uma ilustração)
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Jo 18, 33b-37
«É como dizes: sou Rei»
A linguagem dos reis e dos reinados é muito específica e bastante presente nos livros da Bíblia. Com Jesus, em particular, há um confronto agudo e sistemático com vários reinados. Jesus é e assume-se como Rei mas, para os seus seguidores (porventura alguns de nós) importa clarificar que Rei é este e quais as caraterísticas do seu reinado. Notar que este texto precede a Páscoa, a passagem da morte à vida, o enorme gesto amoroso. Mais ainda, paradoxalmente, o reino de Jesus (a chave dos Seus critérios) é a originalidade do ‘despoder’. Isto é, o poder é não poder, é a doação e a entrega. Podemos perguntar-nos se estes critérios nos seduzem, se viver neste reinado despoderado nos interessa, se faz sentido ser súbdito deste rei-escravo… se servir, nos enche a alma…
O cristianismo não será ingénuo nem fácil. Mas não há toque cristão sem um tom esperançador e otimista: Jesus desfataliza a história…
Vale a pena celebrar os aniversários, embora eu não seja forte na estética desses dias especiais. Melhor quando se faz a festa do agradecimento da vida, recebida e oferecida tal e qual, com tranças de fragilidade e virtude, esperança e desânimo, labor e descanso e tudo mais que tece este valer a pena viver.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se o salmo 15
«Senhor, porção da minha herança»
Os salmos são textos poderosos mas encerram um poética carente de extração e contextualização histórico-teológica. Importam, muitas, vezes, os traços subtis cantados transversalmente. No presente caso, seja a confiança.
Pode ser interessante fixarmo-nos numa palavra, num verso, numa ideia, e a partir dela… tecer. Seja a frase: « Senhor, porção da minha herança». Podemos refletir sobre as heranças, isto é, aquilo que nos foi deixado pela geração anterior ou o que deixaremos para outras gerações. Se perguntarmos o que mais precioso nos foi legado pelos nossos pais, pelos que estiveram antes de nós, terão sido os bens, casas ou terrenos, posições sociais ou diplomas? E o que gostaríamos de deixar aos que nos seguirão, à geração seguinte, aos filhos, se os tivermos? Estamos conscientes de que a esperança, a confiança, pode ser o mais precioso legado que podemos deixar a alguém?…
O sociólogo francês Latouche oferece-nos a “economia de frugalidade voluntária”. É uma ideia fortíssima que poderá contribuir para salvar a cultura ocidental do voraz consumismo. Ao mesmo tempo, não se pode oferecer este propósito a quem não tem pão. Portanto, a par da nossa frugalidade escolhida, nós que já experimentamos ter e agora podemos desacelerar o consumo como expressão de liberdade, há que matar as fomes de meio mundo…
A Bíblia é um conjunto de textos ou «livros» escritos em diversas épocas. Embora se baseie na história do povo Judeu, muitos dos seus textos devem ser interpretados não literal mas metaforicamente. A Bíblia tem um carácter não apenas histórico mas também sapiencial, contendo uma sabedoria de vida mais do que um saber sobre factos. Nos nossos dias, é absolutamente claro que a Bíblia não é um texto científico, não devendo, por isso, ser lido como tal. A linguagem bíblica, muito rica e crucial para os crentes, é muitas vezes simbólica e, à semelhança de todas as expressões artísticas e literárias, alimenta-se de metáforas e parábolas das quais importa retirar a mensagem principal. Assim como o poeta Camões escreveu que «o amor é um fogo que arde sem se ver» e ninguém apaixonado imagina que dentro de si se inicia uma combustão viva e invisível, também a descrição simbólica de Adão e Eva, por exemplo, não deve merecer uma leitura literal e descontextualizada do texto bíblico…
Deus tem fé em nós e por misterioso mistério arriscou criar-nos e amar-nos como seres livres, num cosmos que pulsa também as suas liberdades…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 12, 41-44
«Esta pobre viúva deu mais do que todos os outros»
Nesta acutilante denúncia, Jesus desvaloriza a ostentação dos fariseus e enaltece a simplicidade da viúva indigente. O que mais nos pode impressionar é que individualmente e como comunidade, estamos repletos deste “resquício farisaico”. Quantos de nós, militando na mesma Igreja que Jesus fundou, este Jesus que combateu os gestos hipócritas dos fariseus, procuramos a exibição nas praças e os primeiros assentos? Procuremos, no dia-a-dia, em oposição, fixarmo-nos nos antípodas da ostentação, focados na radicalidade generosa da viúva pobre.
PS: Pode ser libertador e útil, quando bem aproveitado, o confronto com as escrituras nas celebrações religiosas… Será uma vantagem da ‘ritualização religiosa’: constituir-se no privilégio de poder aproveitar esses encontros, também, para muitos processos críticos e autocríticos, comunitários e pessoais, crescendo e gerando abertura à transformação.