crer para conhecer…
Passa despercebido a muitos praticantes da ciência, mas, também nesta arte, a crença precede o saber. Há uma rede fiduciária, nas palavras de Michael Polanyi, sem a qual é impossível conhecer…
Passa despercebido a muitos praticantes da ciência, mas, também nesta arte, a crença precede o saber. Há uma rede fiduciária, nas palavras de Michael Polanyi, sem a qual é impossível conhecer…
A verdade é um horizonte que está sempre por alcançar… que o digam os cientistas e os religiosos, para quem o mundo, na sua funcionalidade ou posse, nunca se deixa agarrar… A liberdade, porém, mora no esvaziamento constante a na radical desapropriação…
A tradição da ciência é focar-se no mecanismo e esquecer o sentido e o significado. Também por este facto, a ciência pode humildemente incorporar as suas próprias limitações.
Não procuramos Deus para explicar as causas físicas do que acontece, mas sim para ir procurando o mistério último do significado do mundo e da vida.
Muitos equívocos de fronteira entre ciência e religião e o seu ensino prejudicam uma ciência moderna e contextualizada e podem contribuir para uma religião infantilizante. Do lado religioso, muita ignorância e inflexibilidade têm alimentado imagens de Deus menos boas, incapazes de serem compreendidas e acolhidas na nossa cultura de conhecimento. Do lado da ciência, por outro lado, existem também inúmeros fundamentalismos, como se a ciência fosse resposta a todas as questões da Humanidade. A par da abordagem científica que interroga e tenta entender o cosmos, está sempre em cima da mesa a questão do sentido da vida, para o qual a religião trilha caminhos.
Apesar da independência que ciência e religião devem ter, há movimentos de interpenetração curiosos. Aprecio os insights que as teorias científicas da evolução podem oferecer à teologia. Por exemplo, a Santíssima Trindade como triangulação de movimento evolutivo, a cristologia a olhar Jesus em evolução ou a própria dogmática como movimento evolutivo. Um Deus que está em acontecimento…
Há um equívoco segundo o qual à medida que a ciência avança a religião recua. Tem razão de ser, embora como equívoco… Com o Renascimento e o desenvolvimento rápido das ciências físicas e matemáticas e de muitos instrumentos de observação, especialmente o telescópio, o conhecimento empírico ganhou crescente autonomia em relação à filosofia e à teologia. Galileu não teve apenas problemas com os teólogos, mas também com os filósofos. Os problemas que a filosofia aristotélica enfrentava com a nova scientia estão bem ilustrados na obra de Galileu “Diálogo sobre os dois grandes sistemas do mundo”. Dada a estreita relação que se tinha estabelecido entre a filosofia aristotélica e a mundivisão cristã, era natural que os problemas da primeira arrastassem na sua queda a segunda. Foi a partir daqui que se estabeleceu o equívoco do recuo da religião com o avanço da ciência…
Ora, o que aconteceu desde o Renascimento não tem sido o recuo da religião provocado pelo avanço da ciência, mas sim um progressivo esclarecimento, que ainda hoje continua, da natureza da religião e da natureza da ciência. A religião não tem que ser para os crentes a fonte do conhecimento dos fenómenos naturais, do modo como funcionam as leis da natureza. Tal tarefa pertence à ciência. Por outro lado, a ideia de uma ciência que prometia um conhecimento objectivo e definitivo do universo e da vida deu lugar a uma concepção de ciência em que muito do que parecia definitivo se revela provisório. Apesar das pontes, possíveis e desejáveis, a autonomia de cada uma das áreas só pode ser benéfica, tanto para a ciência como para a religião, no sentido de levar a que se esclareça cada vez mais a natureza de cada uma delas.
Mesmo se o nascimento do método científico se consubstanciou com Francis Bacon, já no século XVII, até lá alguns progressos de natureza científica e tecnológica realizaram-se a par da filosofia e da religião.
Naquele tempo, as ideias de Aristóteles eram o cenário de todo o conhecimento e um certo fundamentalismo do seu pensamento terá impedido o progresso. Mas grande parte do conhecimento na Idade Média deu-se, de alguma forma, no seio de um ambiente religioso. Sobretudo na Astronomia e na Matemática, mas também na Medicina e noutras áreas, o progresso era associado a instituições religiosas, sendo protagonizado essencialmente por monges. Este facto, aliás, terá marcado a cultura ocidental, em comparação com a China ou o mundo árabe, por exemplo. Foi crucial todo o trabalho desenvolvido no seio da Igreja Católica na Idade Média para se darem os maiores passos na ciência. Foi a Europa Ocidental e a sua cultura que constituíram o palco dos grandes eventos científicos. É o caso da Física, por exemplo: Galileu na Itália, Newton em Inglaterra e Einstein (Alemanha e Estados Unidos). Foi a Idade Média (e no seu seio uma forte presença católica), o terreno histórico que, a montante, suportou estes três gigantes…
A Bíblia é um conjunto de textos ou «livros» escritos em diversas épocas. Embora se baseie na história do povo Judeu, muitos dos seus textos devem ser interpretados não literal mas metaforicamente. A Bíblia tem um carácter não apenas histórico mas também sapiencial, contendo uma sabedoria de vida mais do que um saber sobre factos. Nos nossos dias, é absolutamente claro que a Bíblia não é um texto científico, não devendo, por isso, ser lido como tal. A linguagem bíblica, muito rica e crucial para os crentes, é muitas vezes simbólica e, à semelhança de todas as expressões artísticas e literárias, alimenta-se de metáforas e parábolas das quais importa retirar a mensagem principal. Assim como o poeta Camões escreveu que «o amor é um fogo que arde sem se ver» e ninguém apaixonado imagina que dentro de si se inicia uma combustão viva e invisível, também a descrição simbólica de Adão e Eva, por exemplo, não deve merecer uma leitura literal e descontextualizada do texto bíblico…
Muitos não-crentes, sobretudo alguns que trabalham e pensam na área da ciência, estão convencidos de que a religião continuará a recuar à medida que a ciência avança. Um dia, elaboram, tudo o que há a explicar estará explicado pela ciência e a religião desaparecerá completamente. Apontam muitas vezes o exemplo dos países nórdicos, altamente desenvolvidos, e onde a religião parece estar quase em vias de extinção. Ora, o que os estudos científicos sobre a evolução dos valores europeus vão mostrando é que o declínio da religião se dá ao nível da frequência das igrejas, mas não ao nível das preocupações individuais sobre o sentido da existência. É que mesmo nos países nórdicos europeus, e em outros países desenvolvidos noutros continentes, as pessoas continuam a interrogar-se sobre o sentido da existência. E, como afirmou L. Wittgenstein, os «problemas da vida» permanecem sem resposta, por maior que seja o progresso científico.