enredo e intriga…

Nas escrituras, não há só a tensão entre a fisicalidade e o simbólico. Também no plano literário, há a tensão entre o enredo e a intriga. E assim como valorizo mais o simbólico e relevo alguns acidentes da fisicalidade, tendo a valorizar mais o enredo da revelação do que a intriga da história…

JP in Sem categoria 26 Fevereiro, 2024

como é bom estarmos aqui! Façamos três tendas

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 9, 2-10

como é bom estarmos aqui! Façamos três tendas

Um dos aspectos que se pode abordar do texto de Marcos é o comentário de Pedro face à transfiguração. Pedro é um homem espontâneo e convida o Mestre a permanecer ali, sugerindo a montagem de três tendas. Também nós, como Pedro, principalmente no domínio do grupo religioso, tendemos a querer montar tendas no “bem bom”, no quentinho da fé. Sabemos, porém, que tudo o que nos fecha não vem de Deus e que, sendo útil o conforto comunitário para crescermos na fé, somos sempre impelidos a voltarmo-nos para fora. Mas é ainda mais amplamente humana esta tendência para o conhecido, para o mero conforto, para o vislumbre infecundo, para o sofá. Está na partida, na missão, no rasgo, na abertura e em certa desinstalação o nosso maior encontro…

L 1 Gn 22, 1-2. 9a. 10-13. 15-18; Sl 115 (116), 10 e 15. 16-17. 18-19
L 2 Rm 8, 31b-34
Ev Mc 9, 2-10

JP in Sem categoria 24 Fevereiro, 2024

noite

Noite

Noite.

Bela.

Serena.

Paz.

Sol ausente.

Silêncio de luz.

Estrela cadente

de eternidade.

Noite.

Brilho.

Calma.

Sonho.

Vida escondida.

Segredo de aurora.

Noite de vida.

Noite.

Brisa.

Discreta.

Sóbria.

Lua presente.

Esboço de esperança.

Noite de Deus.

2009

JP in Poemas 22 Fevereiro, 2024

liberdade de largar

Dar ao outro a liberdade de me largar é muito exigente, mas em si mesmo, libertador. Do lado crente, é importante reconhecer que é essa mesma liberdade de largar, e também de largar Deus, que o mesmo Deus nos oferece…

JP in Sem categoria 20 Fevereiro, 2024

Farei aparecer o meu arco sobre as nuvens

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Gen 9, 8-15

Farei aparecer o meu arco sobre as nuvens

Deus “zangara-se” com o homem (linguagem de Antigo Testamento, que convém resignificar…) mas reconciliou-se com o mundo, por via de Noé, que foi fiel ao Senhor. O arco-íris no céu representa o arco invertido, gesto usado pelos guerreiros como sinal do fim da guerra e do convite à paz. É isto que Deus fez com Noé e que nos quer comunicar também a nós. Tentemos nós também pousar alguns arcos de batalhas que ainda travamos, deitar fora algumas flechas apontadas a alguns inimigos. Quais são as guerras que ainda existem na minha vida? Quero/posso colocar o arco das flechas invertido, como sinal de paz? O arco-íris no céu, sinal colorido de arco pousado, de paz, de cor e de beleza, é deveras inspirador…

Este texto é adaptado em parte ou na totalidade de palavras anteriores já publicadas.

L 1 Gn 9, 8-15; Sl 24 (25), 4bc-5ab. 6-7bc. 8-9
L 2 1Pd 3, 18-22
Ev Mc 1, 12-15

JP in Sem categoria 18 Fevereiro, 2024

teologia popular e divulgação científica

Menos conhecida do que a divulgação científica e seus matizes, como a compreensão pública da ciência, existe uma teologia pública, que poderia viver melhor dias. Arrisco dizer que, muitas vezes, reconheço mais o esforço dos cientistas em ‘vender positivamente barato’ o complexo emaranhando dos bastidores científicos do que o (pouco notado) esforço dos teólogos em falarem com linguagem acessível. E que urgente seria para a fé uma mais intensa e mais eficaz teologia pública.

JP in Sem categoria 16 Fevereiro, 2024

encontro em vez de fuga

A adesão religiosa, como tudo na vida, ganha mais em se ir resignificando como experiência de encontro e não como experiência de fuga…

JP in Sem categoria 14 Fevereiro, 2024

Acompanhamento espiritual: o lugar estrutural de uma Igreja aberta

Paiva, J. C. (2024). Acompanhamento espiritual: o lugar estrutural de uma Igreja aberta. Site Ponto SJ, 07-02-2024. Disponível aqui

Não será nem exagerado nem simplista entender a Igreja e os seus desafios na atualidade como espaços abertos que, individual e comunitariamente, promovem o integral crescimento espiritual das pessoas. É verdade que este lugar de Igreja apresenta novas equações, novas aberturas e novas saídas, mas toda a tradição secular foi um berço de acompanhamento espiritual. É bom recordar os padres do deserto (e as madres do deserto, menos invocadas, mas existentes) no seu exercício de busca e encontro, amparado com dinamismos de acompanhamento. Por tudo isto é importante sublinhar a urgência eclesial de estimular o acompanhamento espiritual.

A forma como este acompanhamento pode ser processado apresenta hoje características e oportunidades específicas. Desenvolvemos de seguida, ainda que de forma sintética, alguns destes aspetos.

a) É mais acompanhamento (co-caminho) e menos direção espiritual;

Este ajuste mais ou menos contemporâneo, de direção espiritual para acompanhamento espiritual, significa mais do que uma nuance. O termo direção, de facto, apresenta, pelo menos na semântica, senão mesmo na praxis, uma insinuação mais dirigista e vertical. Na sua versão mais aguda, caricatural ou não, a direção espiritual pode pisar a linha da invasão da consciência e, em muitos casos, da manipulação ou mesmo do terrorismo espiritual. De forma mais ou menos direta chegaram-me ao conhecimento experiências traumáticas religiosas vertidas em expressões do tipo ‘é vontade de Deus para ti…’

b) É também e sempre, de alguma forma, psico-espiritual;

Discute-se muito sobre a separação ou simbiose dos terrenos pisados em acompanhamento, no que diz respeito aos fatores espirituais e psicológicos associados. Tenho uma posição ela mesmo tensional sobre este assunto: por um lado, entendo que em nome da inteireza evangélica que procuramos, o acompanhamento espiritual terá sempre que invadir e ser invadido por desafios de natureza psicológica. O espiritual, bem o sabemos, entrelaça-se no psicológico (e no socio-biológico, bem entendido) de forma indissociável. Por outro lado, há casos em que a circunstância psicológica de partida não aconselha a experiência espiritual aprofundada. Inácio de Loyola previne de forma equivalente uma certa condição psicológica e física para encetar a experiência dos exercícios espirituais. Nesses casos de dúvida sobre a robustez mínima de partida, é bom colegiar a aproximação ao acompanhamento, harmonizando triangulações transparentes e eticamente autorizadas pela pessoa em ajuda, entre psicólogos, psiquiatras e acompanhadores espirituais. Tudo isto aponta para a essencialidade e a inteireza encarnada da vida cristã.

c) Pode, com vantagem, ser protagonizado por mulheres;

Sem querer entrar aqui na extensa, complexa e fascinante discussão do feminismo (ou falta dele…) na Igreja, vou entendendo que há um dramático déficit da sensibilidade e de protagonismo feminino, ao nível da visão e do apontamento do Evangelho vivido, precisamente a partir dessa condição humana de se ser mulher. Falta depois, também, na sequência, espaço amplo para a liderança e protagonismo femininos nos exercícios pastorais, eclesiais, sacramentais e espirituais. Enquanto para alguns sonhos de uma Igreja ‘com mais feminino’, estamos sujeitos a uma inércia monstruosa, no plano do acompanhamento espiritual é “desproblemático” e canónico este serviço ser realizado por mulheres. Existe, portanto, no ministério sagrado da escuta e do acompanhamento, uma ampla margem de renovação eclesial, incluindo mais protagonismo feminino. Arrisco dizer que muito sacerdotes teriam a ganhar complementaridade pessoal e pastoral com a experiência de eles mesmos terem acompanhamento espiritual no feminino.

d) Tem sentido propor-se o acompanhamento espiritual como estrutural na vida cristã, sob as recomendações pedagógicas da Igreja (se é que estas ainda são escutadas e apropriadas pelos crentes…).

Poderiam ser revistas algumas ‘obrigações’ doutrinais (interpretamos como sugestões de vida cristã católica) que andam por aí há muito tempo, tantas vezes ditas e vividas de forma excessivamente métrica ou sacramentalista. A ideia seria encorajar fortemente o acompanhamento espiritual como espaço prioritário de crescimento cristão. Este cenário é redobradamente agudo para quem vive no canteiro da Igreja onde fecunda a espiritualidade inaciana. Relembro as normas católicas extraídas do cânone: “1- Participar da Santa Missa aos domingos; 2- Confessar-se ao menos uma vez por ano; 3- Comungar ao menos pela Páscoa da Ressurreição; 4- Fazer jejum e abstinência nos dias estipulados pela Igreja: Quarta-Feira de cinzas e Sexta-Feira Santa; 5 – Ajudar a Igreja em suas necessidades”. Sem deitar fora a água e o bebé, também pelo inegociável valor dos sacramentos, há aqui lugar para outras prioridades que, com toda a certeza, como forte recomendação e aferição de vida cristã, poderiam incluir o acompanhamento espiritual.

Além dos itens a) a d) acima abertos, há uma caraterística do acompanhamento espiritual que é de enaltecer e sublinhar e que, de alguma forma, nos distingue de certas ofertas religiosas mais ou menos fechadas e fáceis, de certo fast food espiritual: o acompanhamento espiritual implica, processo, diálogo, confronto, aprofundamento, trabalho, caminho acompanhado. Vale a pena, por isso, que as instâncias religiosas e o dinamismo sinodal em curso levem muito a sério esta questão, para que se formem mais e melhores acompanhantes espirituais e se fomente esta tradição enculturada, trazida ao nosso tempo e às nossas sedes.

JP in Sem categoria 12 Fevereiro, 2024

fica limpo

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 1, 40-45

quero: fica limpo

Ao repto do leproso “se quiseres podes curar-me”, Jesus responde: “Quero: fica limpo”. Aqui está um “jogo” entre Deus e o homem sobre o qual convém refletir. São elementos importantes: o desejo do homem em ser curado e a resposta pronta do próprio Deus. Seguem-se a cura propriamente dita e até uma recomendação de descrição (não conseguida), bem como um rastilho de testemunho e propagação da fé. Fixarmo-nos essencialmente na fisicalidade mais ou menos espetacular deste relato seria sempre minimizar o seu potencial. Será mais valioso identificar e trabalhar para a cura da nossa “lepra interior”, das chagas que nos degradam…

Este texto é adaptado em parte ou na totalidade de palavras anteriores já publicadas.

L 1 Lv 13, 1-2. 44-46; Sl 31 (32), 1-2. 5. 7 e 11
L 2 1Cor 10, 31– 11, 1
Ev Mc 1, 40-45

JP in Sem categoria 10 Fevereiro, 2024

quasi-ateu me confesso

Eu, quasi-ateu me confesso. Deus, é de tal maneira indizível, de tal forma “totalmente Outro” que eu tenho de reconhecer as minhas (muitas) zonas de ateísmo, em que não O sei expressar, em que não O sei viver. Sou ateu quando digo apenas deus(es). Por vezes (quando eu deixo…) há luz e só luz. Mas em risco, em fé. Negar o nosso auto-ateísmo crítico, mesmo sendo pessoas de fé, é talvez perigoso. Como se pudesse haver certeza ou prova científica da existência de Deus. Não, a aventura é de outra ordem: é uma ponte de corda que faz passagens, desde logo entre a morte e a vida (qual Páscoa), mas corda de fios tecidos de incerteza, de mistério, de não palavra, de mergulho. É deste batismo que precisamos sempre.

JP in Sem categoria 8 Fevereiro, 2024