Ministério ordenado na Igreja Católica: “mulher não entra”?

Paiva, J. C. (2025).Ministério ordenado na Igreja Católica: “mulher não entra”?ulismo e Evangelho. Site Ponto SJ, 06-08-2025. Disponível aqui

O assunto é o acesso feminino ao ministério ordenado da Igreja Católica. O tema já é muito debatido dentro e fora da Igreja Católica e esse é um bom e até esperançoso sintoma, debaixo da espuma dos nossos dias. São conhecidos os mais variados argumentos para ficarmos no mesmo lugar: a tradição (numa visão imobilista e não dinâmica, com toda a certeza); as escrituras (numa versão literalista ou de pesca avulsa interesseira de palavras); a universalidade católica (subtraída de uma verdadeira cultura poliédrica de diversidade); a inoportunidade, face a tantas outras urgências eclesiais (confortável para ir deixando tudo na mesma); o comparativo com outras religiões que, por incluírem mulheres nas lideranças celebrativas, não fizeram crescer o rebanho (transportando um olhar estatístico muito distante da ousadia desconcertante da singularidade numérica dos Evangelhos); entre outros argumentos.

Um dos tópicos mais apresentados pelos resistentes baseia-se na rica dicotomia eclesial Baltazariana: uma Igreja petrina versus uma igreja mariana, coexistindo em complementaridade. Do lado petrino, a segurança, a rocha, a força, a pujança, a testosterona, talvez. Do outro lado, a faceta materna: doce, atenta ao detalhe, sensível, “redondinha” (já agora, de mãos postas, direitinha e obediente). Ora este estereótipo, principalmente do lado mariano, revela sinais culturais que podem sustentar certa crítica e certa inquietude. Talvez o lado feminino, focado, em particular na imagem de Maria, Mãe de Jesus de Nazaré, pudesse ser um outro: mulher resistente, de lenço na cabeça e mãos na massa, pronta a escutar, cuidar, discernir, decidir… e liderar, certamente. Por aqui anda, confesso, no meu horizonte, o perfume inspirador feminino. É uma ironia que não consigo explicar, esta convicção endémica que tenho sobre a forma absolutamente revolucionária com que Jesus tratou (e contou) com as mulheres e o enquistamento do lugar feminino no seio da Igreja Católica. Reconheço as sementes evangélicas e de traço cristão nos bastidores do alavancamento sociocultural da mulher no último século, mas tal potência está muito aquém de germinar eclesialmente.

Sou obvia e reconhecidamente um ignorante em teologia, cristologia e eclesiologia mas, depois de muitas tentativas, não consigo ganhar entusiasmo e conforto racional ou emocional a partir de nenhum dos argumentos que se me apresentam sobre esta espécie de misoginia eclesial. Sendo também ignorante, mas um pouco menos, no que concerne à relação entre ciência e religião, sou tentado a explicitar um aperitivo original para uma analogia que simboliza, a partir do meu ponto de vista, um argumento óbvio de abertura a esta questão. Enuncio assim: se eu validasse os argumentos que sustêm a conservação do não acesso ao sacerdócio feminino, invalidaria, por arrasto, a boa compatibilização entre ciência e religião. Este não é o fórum certo para desenvolver o tema, mas o que fui lendo e meditando sobre a natureza da ciência e sobre a natureza da religião leva a um lugar óbvio: ciência e religião só serão compatíveis entre si com um primado inegociável de não literalidade bíblica, de dinamismo epistemológico e de abertura sem pré-conceitos rígidos. Os mesmos pressupostos, trazidos para a discussão em causa, eliminam qualquer razoabilidade dos argumentos que sustentam o fechamento às mulheres ao ministério ordenado.

O concílio Vaticano II, tão inspirador e ainda tão distante no protagonismo católico, ofereceu-nos uma forma (re)novada (não nova, porque está no “velho” Evangelho): o mundo e os seus sinais são um bom espelho para nos entendermos, relermos e agirmos. No que diz respeito ao feminino, esse reflexo está por projetar: da geografia cultural onde me encontro, o espaço da mulher na Igreja é, para usar poucas palavras, culturalmente insuportável. A Faculdade de Ciências onde trabalho é (muito bem) liderada por uma mulher. Por que raio de argumentos poderíamos impedir, hoje, uma mulher de ter liderança académica instituída e efetiva? Poderão dizer-me que a Igreja é coisa maior (ou será ‘menor’, no bom sentido do termo?) mas não se consegue entender esta originalidade da Igreja.

Está claro que o ministério ordenado é um serviço e que jamais seria um fim em si mesmo – muito menos uma reivindicação – para qualquer mudança na Igreja. Mas esta cerca ao feminino é sintoma profundo de algo que não está bem. Como ganharíamos todos, homens e mulheres, se tivéssemos mais e mais rasgadas portas para partilhar e assim receber a sensibilidade feminina colhida dos Evangelhos e celebrada na nossa fé comunitária.

Valha-nos, entretanto, o acompanhamento espiritual feminino, que está canonicamente enquadrado e vai sendo, aquém do possível e desejável, realizado em Igreja. Oxalá, no mínimo, possa constituir-se num mais robusto e institucionalizado ministério eclesial, então também liderado no feminino.

Pergunto-me como realizará, hoje, uma jovem adolescente da nossa cultura ocidental este nó patriarcal? A maioria das minhas amigas católicas acompanha-me, genericamente, neste argumentário. Mas a sua história com os Evangelhos e com a Igreja já teve positiva sedução vinculativa e deu lastro a uma pertença, crítica, mas fluente e fiel. Será assim com gente mais nova?

Tenho esperança na sinodalidade como processo de ser Igreja e estou disposto a pagar o preço da lentidão deste avanço. Mas reconheço perigos imobilistas.

Para algumas pessoas dentro da Igreja, ou menos preocupadas com este assunto, ou ainda instaladas na ideia de que pouco importa esta questão, o acesso feminino à liderança ministerial católica é não só difícil de abordar, como também inconveniente e, sobretudo, irrelevante. Será mesmo assim?

JP in Sem categoria 4 Novembro, 2025

viver eternamente…

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se pode escutar-se, entre outras leitiras Jo 6, 51-28

quem comer deste pão viverá eternamente

O texto de João recentra-nos na força da banalidade e da crucialidade do pão, do pão quotidiano, confrontado com a ‘vida eterna’. Sabemos que podemos ajustar a frase “quem comer deste pão viverá eternamente” para uma outra versão mais ‘em trânsito’ que, não perdendo a escatologia, traz o alimento para este tempo e para esta fome que somos: quem comer deste pão vive intensamente. Quando celebramos a morte, e, por isso a vida, temos como num espelho, não a receita mas o caminho face à vida e a morte, nossa, dos que amamos e de todos: viver intensamente é a celebração da vida… e da morte!

DOMINGO XXXI DO TEMPO COMUM

Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos


Terceira Missa
L 1 Is 25, 6a-7-9; Sl 22, 1-3a. 3b-4. 5. 6
L 2 1Ts 4, 13-18
Ev Jo 6, 51-58

JP in Sem categoria 2 Novembro, 2025

Há pessoas que morrem



Há pessoas que morrem
e ficam penduradas
em papéis como defuntos.
Há pessoas que morrem…
e são choradas como o vento
que se sente mas escapa.
Há pessoas que morrem
e populam na memória
mas não se podem abraçar.
Há pessoas que morrem
e parecem não mortas
e aparecem meias vivas.
Há pessoas que morrem…
… com elas vou morrendo…

JP in Sem categoria 30 Outubro, 2025

Morreu a Tia

Hoje morreu(-me) a Tia

Hoje chorei o dia

Em que alguém (me) morreu.

Minha Tia.

Já viveu.

A cova onde jazia

Era descanso seu.

Nesse dia (me) morria

Noutro dia, já viveu.

Hoje foi a minha Tia,

amanhã serei só eu.

Hoje foi a minha Tia,

amanhã serei só eu…

abril 2021

JP in Sem categoria 28 Outubro, 2025

sou mesmo melhor do que aquele outro…

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Lc 18, 9-14 

«…por não ser como os outros homens, que são ladrões, injustos e adúlteros, nem como este publicano»

Este trecho de Lucas puxa por todos nós, como num espelho. Distraídos, olhando criticamente os outros, estamos a milímetros de uma super-auto-consideração… Na perspectiva espiritual, entende-se como a relação com Deus, esse tateamento que só progride na verdade do que somos, precisa de gente disposta a olhar para si com menos defesas de qualquer superioridade. A consciência de que somos publicanos (comuns carentes) pode tornar-nos mais livres para acolher a confiança (comuns crentes…).

DOMINGO XXX DO TEMPO COMUM

NOTA: Este artigo é repetido/adaptado de um outro já publicado neste blog

L1: Sir 35, 15b-17. 20-22a (gr. 12-14.16-18);
Sal 33 (34), 2-3. 17-18. 19 e 23
L2: 2 Tim 4, 6-8. 16-18
Ev: Lc 18, 9-14

JP in Sem categoria 26 Outubro, 2025

paciência social…


Na solidariedade social, o caminho, quando algo corre menos bem, é dar melhor e não deixar de dar. Por isso, a par da melhoria da eficácia, sem persistência e sem paciência não há bom cuidado social.

JP in Sem categoria 24 Outubro, 2025

Cultura Científica e populismo

Paiva, (2025).“Cultura Científica e populismo”. Jornal Público (08-10-2025).

Disponível no Jornal Público em

https://www.publico.pt/2025/10/08/opiniao/opiniao/cultura-cientifica-populismo-2150012

A cultura científica entrou no nosso ADN, na nossa forma de vida e de pensamento. Ao longo dos últimos séculos, a ciência moderna, essa empresa historicamente recente, pôde fazer de todos nós pessoas melhores, com mais audácia sobre o funcionamento do mundo, com mais aberturas e com mais esperança média de vida. Como todos os eventos congéneres, a ciência viveu e vive na corda bamba ética de servir a bondade ou a ganância humana. Na sua essência e na grande maioria das suas manifestações tecnológicas, a ciência pode ser considerada um bem cultural e um bem pragmático.

O método científico, nos bastidores e nas práticas científicas, apesar das inevitáveis sombras de qualquer construto humano, é uma luz: carrega um lastro de beleza, um lastro de conhecimento, um lastro de valor da realidade, um lastro ético de bem e um lastro inegociável de liberdade no seu modo de acontecer.

Muitas destas dimensões, que tínhamos como inegociáveis, estão a ser ameaçadas, mesmo no mundo ocidental. Um dos ataques mais óbvios à ciência está a realizar-se, tão discreta quanto escandalosamente, por via de um fenómeno sociopolítico que, a menos de melhor nome, podemos designar por ‘populismo’.

Não conseguiríamos num pequeno artigo desta natureza desenvolver as complexas teias nem do populismo nem da própria natureza e manifestação da ciência. Contudo, de forma assumida e deliberadamente sintética, apontamos algumas evidências da forma como o populismo representa, em certo sentido, a antítese da ciência e, assim, um ataque sem precedentes aos pilares civilizacionais humanistas:

  1. O que interessa são as perceções, não os factos

O bom populismo vive do alarme das perceções independentemente do que a realidade realmente realiza e mostra. Cavalgando na espuma das redes sociais e da instantaneidade intencional, transforma-se a perceção da não-realidade numa realidade alternativa, imune aos factos. A ciência, ao contrário, impõe a si mesma uma coerência constante com a realidade. O que não está ‘pousado em cima da mesa’, o que não é real, não é objeto da ciência e não pode ser estudado, nem, muito menos, ser afirmado como uma evidência científica.

  • Senso comum e profundidade

O populismo alimenta-se do senso comum e potencia-se naquilo que de mais cutâneo pode ser convocado. A humanidade, aquilo que somos e podemos ser, é sempre mais profundo do que a superfície. Para um populista, o que parece é. Mas, em ciência (como na humanidade…), há que ir mais fundo. É crucial e ilustrativa a experiência de Galileu Galilei, nos inícios históricos da ciência: o senso comum diria que uma pena e uma pedra cairiam da torre de Pisa a velocidades diferentes, chegando cada um de sua vez ao chão. Mas a imaginação criativa e a superação do senso comum levou este génio a pensar que ambos os corpos poderiam cair à mesma velocidade, descritos pelas mesmas leis físicas, caso não houvesse resistência do ar. Superar o senso comum é, muitas vezes, ver mais além e estar mais perto da verdade sobre o funcionamento do cosmos.

  • A insignificância da experiência

Confirmar com a experiência (generalizada e generalizável) uma determinada ideia (ou perceção) é para o populista uma insignificância. Já para fazer ciência todas as articulações lógicas, suposições, teorizações e previsões terão de ser assumidamente peneiradas de forma radical pela experiência. É por isso que o cientista tem o laboratório como uma espécie de espaço sagrado. As ideias de Galileu sobre a queda dos corpos só se fizeram conhecimento científico quando um tubo de vácuo com uma pena e uma pedra confirmaram que tais corpos, sem resistência do ar, caíam, de facto, nos mesmos tempos. O laboratório populista é uma inexistência e confirmar informação é tudo aquilo que um populista não quer fazer.

  • A irrelevância da matemática

Para um populista uma área de 30 m2 é idêntica em valor numérico a uma área de 70 m2. Isto é, em linguagem matemática populista 30 = 70 e isso não constitui problema algum. Uma das noções que garantidamente nunca atravessa a propaganda populista é uma ferramenta enorme nas ciências exatas: a ordem de grandeza comparável. Mas o equívoco populista vai matematicamente muito mais longe quando toca a probabilidade e a estatística: para um populista, qualquer evento (mesmo que não representativo da realidade) pode ser acriticamente generalizável. Há um vacinado contra a covid-19 que morreu? Então a vacina contra a covid mata toda a gente! Há um migrante que recebe um subsídio e não é um trabalhador ativo? Então os migrantes recebem subsídios e não trabalham! Há alumínio na solução da vacina do tétano? Então a vacina do tétano intoxica de alumínio! (não importa a noção de dose nem de concentração…).  Para um populista dinâmico, a probabilidade e a estatística são assaltadas por malabarismos percecionais e a parte, sem cerimónia, assume a figura do todo. Toda esta manipulação dos números favorece o aproveitamento mais sórdido do populismo que a história não se cansa de gritar: o estabelecimento de bodes expiatórios. A ciência, pelo contrário, tem na boa relação com a matemática e com os números sólidos o suporte mais seguro para o estabelecimento das suas leis, para a construção dos seus padrões e para a sua capacidade preditiva, com efeitos absolutamente inegáveis e extraordinários na qualidade da vida humana.

  • O alheamento à consensualidade e à abertura

A ciência é um processo dinâmico que vive da consensualidade. Para uma afirmação ter ‘cheiro’ científico, tem de ser trabalhada com profundidade e persistência, em procuras de consensos entre pares que demoram muito tempo e carecem de argumentação lógica profunda e sustentada. Mais ainda, depois de um lugar científico ser consensualizado e assumido, ele permanece intrinsecamente e antidogmaticamente aberto e sujeito à refutabilidade futura. Há um pulsar de abertura no trilho científico. A afirmação populista não se sujeita a esse escrutínio: lançada, colhida e disseminada nas redes digitais, torna-se uma ‘verdade’ instantaneamente estabelecida e de alcance universal imutável.

  • O ataque invasivo à liberdade

Muitos cientistas (e não cientistas) não se apercebem, mas a ciência carece endemicamente de liberdade para se fazer. Liberdade de pensamento e liberdade de ação, numa independência radical de outros poderes. Os instintos populistas já edificados e em ação navegam em águas opostas. O poder estatal pode, por exemplo, lançar práticas sociais e políticas que se opõe à ciência e desdizê-la na praça pública e nas deliberações. O dióxido de carbono, afinal, não causa efeito estufa. Ou, num ludibriar estatístico sem precedentes, acabar com o uso de paracetamol na gestação porque uma grávida que tomou paracetamol teve um filho que foi diagnosticado com autismo.  Ou, mais sofisticado ainda, financiar a ciência não de acordo com o mérito dos projetos de investigação, mas em consonância com as opiniões expressas e lugares políticos dos respetivos protagonistas e instituições. 

Cada linha e cada entrelinha do populismo é uma ameaça não só à ciência, mas ao humanismo. Torna-se um imperativo existencial dos nossos dias combater o populismo, com as armas próprias da ciência, nomeadamente a procura do rigor, a sustentação lógica, a vinculação à realidade, a profundidade, a abertura, o diálogo, a paciência, mas também a inteligência afirmativa, corajosa e lúcida. Esta luta é uma demanda para a ciência, para a divulgação científica e para a educação científica. Nunca a ciência, cada vez mais enculturada, esteve num palco tão assumidamente político. E a ciência terá de saber fazer este papel, também, mas não só, pela sua própria sobrevivência.

JP in Sem categoria 22 Outubro, 2025

fez, faz e fará o cosmos que nos contém

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Slm 120

«O nosso auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra…»

Quando se reza o credo na missa, de alguma forma nos encontramos com este salmo: “Deus criou (e está a criar) o céu e a terra”. Nada dizemos sobre as origens de tudo o que existe e a Bíblia não é o livro indicado para indagar sobre esse assunto (será melhor perguntar à ciência que, ainda que provisoriamente, nos dá boas pistas sobre a origem e a evolução da humanidade e do cosmos). O auxílio que vem do Senhor, porém, contém mas ultrapassa o alívio existencial de reconhecer O criador. É que este auxílio, na crença cristã, tem uma presença concreta e real, espelhável no espaço e no tempo, sistemática e contínua (Espírito Santo). Reconhecer-me auxiliado, incondicionalmente, pode ser uma fonte de liberdade.

DOMINGO XXIX DO TEMPO COMUM



L1: Ex 17, 8-13; Sal 120 (121), 1-2. 3-4. 5-6. 7-8
L2: 2 Tim 3, 14 – 4, 2
Ev: Lc 18, 1-8

JP in Sem categoria 20 Outubro, 2025

o nosso auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra…

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Slm 120

«O nosso auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra…»

Quando se reza o credo na missa, de alguma forma nos encontramos com este salmo: “Deus criou (e está a criar) o céu e a terra”. Nada dizemos sobre as origens de tudo o que existe e a Bíblia não é o livro indicado para indagar sobre esse assunto (será melhor perguntar à ciência que, ainda que provisoriamente, nos dá boas pistas sobre a origem e a evolução da humanidade e do cosmos). O auxílio que vem do Senhor, porém, contém mas ultrapassa o alívio existencial de reconhecer O criador. É que este auxílio, na crença cristã, tem uma presença concreta e real, espelhável no espaço e no tempo, sistemática e contínua (Espírito Santo). Reconhecer-me auxiliado, incondicionalmente, pode ser uma fonte de liberdade.

NOTA: Este artigo é repetido/adaptado de um outro já publicado neste blog

DOMINGO XXIX DO TEMPO COMUM



L1: Ex 17, 8-13; Sal 120 (121), 1-2. 3-4. 5-6. 7-8
L2: 2 Tim 3, 14 – 4, 2
Ev: Lc 18, 1-8

JP in Sem categoria 18 Outubro, 2025

Populismo e Evangelho


Paiva, J. C.
 (2025). Populismo e Evangelho. Site Ponto SJ, 14-10-2025. Disponível aqui

Recentemente escrevi no jornal Público um artigo intitulado “cultura científica e populismo” onde explanei os aspetos que, em meu entender, colocam em rota de colisão o populismo sociopolítico vigente e a cultura científica.

São impressionantes as não-sintonias do discurso e da prática populista com o modus faciendi da ciência. No populismo – e em contraste direto com a Ciência, temos: 1) a hipervalorização das perceções, em detrimento da realidade, tal qual ela é, incluindo a sua complexidade; 2) o lastro de senso comum agudo, que impede profundidade de análise; 3) a insignificância da experiência como suporte das afirmações; 4) a irrelevância da matemática e do bom tratamento dos números, particularmente dos conceitos de probabilidade e estatística; 5) o alheamento da consensualidade e da abertura na construção das ideias; 6) o ataque invasivo à liberdade de pensamento verdadeiramente não condicionado.

Até este ponto não invocamos nenhum argumento que convoque o sentido cristão. Bastaria o lugar humanista para nos colocar, no mínimo, atentos às aparências de bem do populismo. Mas alguém que trabalhe na área científica e seja cristão há de somar aos argumentos acima o pináculo principal: o populismo choca de frente e sem cerimónia com o Evangelho.

O tutano inspirador da fé cristã reside no amor ao próximo, que se abre numa universalidade sem rótulos e sem sectarismos. É o oposto da defensividade e do poder de excluir, é o hino do serviço a todos, do abraço e do acolhimento. No rasto judaico-cristão, perde o pé quem não se recentra constantemente nas grandes perguntas: ‘o que fizeste tu ao teu irmão?’, ‘quem é o teu próximo?’. O populismo, na sua génese, potenciado pela superficialidade panfletária, é a secundarização destas perguntas, ironicamente disfarçado, muitas vezes, de religiosidade duvidosa.

Podemos admitir, olhando para o mundo e em particular para a Europa e para o nosso país, que faltou e falta pragmatismo à relação com os migrantes. A gestão possível da pólis, a política, portanto, terá de ser minimamente, ou maximamente pragmática e apurar as reais possibilidades de acolhimento, as leis mais realistas, as fiscalizações inevitáveis, as iniciativas de combate ao tráfego humano e todos os mecanismos para lidar com este complexo problema, que não tem sem soluções simplistas.  Mas ao cristão será pedido que toda a visão, toda a “opinação” e principalmente toda a ação sejam feitas de Evangelho na mão, isto é, com os critérios amorosos de um tal Jesus de Nazaré. Notar que este ‘Evangelho na mão’ é radicalmente metafórico. O que quero dizer com Evangelho na mão não é mostrar nem içar publicamente o dito livro: é ser o Livro, é viver e assim continuar a dizer o que lá está, em gestos ‘imitadores de Cristo’.

O que me parece faltar ao discurso populista de muita gente, com quem paradoxalmente me cruzo, também, nos corredores da Igreja Católica Romana, é a lembrança da compaixão e da misericórdia. E sem esse recentramento no cerne do alvo crístico, não há cristianismo que nos valha. Podemos nós esquecermo-nos, envolvidos nas vestes religiosas, do amor desmedido de Jesus de Nazaré, esse estrangeiro, que morre amorosamente na cruz e (nos) liberta na ressurreição amorosa dos mais frágeis, que somos todos nós?

Não consigo deixar de convocar, a propósito desta temática, algumas experiências que fui tendo com pessoas estrangeiras, em variados contextos. Foram principalmente marroquinos, senegaleses, malianos, etíopes, ganeses, todos de tecido islâmico, com quem me cruzei no Sul de Itália, por “convocatória” do Papa Francisco. Com esses, comi, convivi, escutei, joguei, abracei. Toquei, ainda que minimamente, a sua dor, a sua procura e a sua angústia. Foi pouco e pequeno, mas esse toque libertou-me de julgamentos sectários. Mas também, em diversas campanhas, com sírios ou com ucranianos, já na lusa pátria, acolhendo em casa, pude sentir-com, partilhar, cruzar a minha vida e o meu olhar com as suas vidas. Estas experiências são cruciais para o lugar que o estrangeiro ocupa no meu universo. Somo a essas experiências o privilégio de, desde jovem, ter viajado e me ter cruzado e entrecruzado com gente de muito sítio. E acrescento ainda, que não quero esquecer, o meu Pai e o meu Avô – e certamente quem os precedeu – já foram estrangeiros. Como sempre, a experiência ou a falta dela, corroboram os ideais. Arrisco escrever que o que me parece faltar a muitas colocações populistas na relação com os estrangeiros é o convívio mais íntimo com o outro-diferente.

Curiosamente, em todas estas experiências que elenquei, reconheço ingenuidades pessoais, logísticas e até políticas. Não é o lugar certo para detalhar, mas sei bem que podemos ser mais eficazes a acolher, mais organizados e até mais astutos e menos ingénuos. Podemos combater as redes de tráfego que minam as legítimas fugas em procura de um melhor presente e de um melhor futuro. Mas essa lucidez de ação sociopolítica e logística não pode sombrear nunca, nas palavras e na alma, o perfume da compaixão, o cheiro da fraternidade universal que não só nos completa, mas que também nos identifica como cristãos. É essa a bandeira crística, a da fraternidade, não outra.

O primado porventura mais subtil – talvez também mais rasteiro – do populismo, é a primazia do eu ou do ‘nosso grupo’ em relação ao nós aberto e universal. Quem reza “Pai Nosso” não reza nem pai meu, nem pai de pessoas selecionadas. Ironicamente, o eixo do eu, o eixo ‘dos nossos’ é o primado da guerra, da pequena e da grande guerra. A mistura do populismo com a coisa religiosa gera, precisamente, a guerra santa. A história mostra-nos bem os lugares das guerras santas e a forma como Jesus e o seu Evangelho são a antítese dessas batalhas.

JP in Sem categoria 16 Outubro, 2025