felicidades provisórias…

No alcance da felicidade todos nós já experimentamos este evidente turbilhão: 1- do meu vazio me movo, sonho, luto e alcanço; 2- saboreio a fruição, mas o que parecia um tudo passou a ser nada… vazio de novo; 3- novo impulso para mais um enchimento provisório… Haverá coisa grande para saciar tão grande-eterno vazio?…

JP in Frases 14 Maio, 2020

A saudade da missa é estruturalmente insuficiente

J. C. Paiva, A saudade da missa é estruturalmente insuficiente. Site PontoSJ (que se recomenda…). 10 de maio de 2020.

Disponível na íntegra aqui

Uma declaração de interesses prévia que, mais do que me colocar em ângulo menos suspeito, previna eventuais retiradas de frases ou ideias fora de contexto, que pervertam a mensagem que gostava de passar: como cristão, faz-me falta celebrar a eucaristia em comunidade; reconheço na celebração da missa uma oportunidade notável de congregação de fé; não entendo, nesta linha, que esta “quarentena missal” deva implicar qualquer desvalorização da eucaristia (pelo contrário…). Porém, algumas perguntas se me colocam…

1- Desejar e agradecer o regresso à missa com que horizontes?

Posso estar a exagerar mas, nem sei bem porquê, imaginei uma festa de alguns em agradecimento a Deus pelo regresso da missa, como os antigos dançavam, aplacando a ira dos deuses tiranos e mandatórios, em festa pela vinda da chuva… Em todo este processo de confinamento, como de resto já era na nossa vida, há desafios notáveis para resignificar constantemente as nossas imagens de Deus. Não sei se levamos a sério o risco de Deus em nós, na nossa liberdade e no pulsar do mundo, o Seu mistério amoroso de omnitransformação, que recusa caprichosamente marionetar o tempo e o espaço. Até admito a mim próprio agradecer a Deus o regresso da missa, quando chegar o tempo oportuno, em segurança sanitária e na mais elementar alteridade humana… e por isso também cristã. Mas, no meu caso, sinto um apelo a agradecer-Lhe este tempo que estou a viver, de desafio para um crescimento, pessoal e comunitário, numa Igreja em caminho. O que teve, tem e terá a dizer-nos esta experiência de não poder celebrar a partilha de um pão tão especial?

2- A ausência da missa é crucifixão?

Temo certa visão e vivência destas privações sacramentais como cruzes flagelantes a suportar. Não serão antes oportunidades de re-velar um sempre novo Cristo que espreita? De rever a nossa posição mais ou menos rotineira face às potencialidades dos sacramentos, que importa serem sempre novos? O Evangelho é Boa Nova e este Espírito novo que sopra não meteu férias com medo do vírus. Está aí, a soprar e a inspirar, a provocar e a co-mover. Voltar ao que era é sempre curto, recuar apenas não é o estilo de Jesus. Não será a privação sacramental, mais do que uma crucifixão, uma Páscoa que se adivinha para um novo renascimento? Não será claro o convite, mais do que a saudade pela saudade, a saber estar numa Igreja vazia (como o Papa bem mostrou)?

3- Haverá espaço para a diversidade celebrativa e para a Igreja doméstica?

O que nos tem trazido este tempo, enquanto crentes Católicos Romanos, é um desafio concentrado de provocação nascida há seis décadas de dentro da nossa Igreja, fruto de um fecundo discernimento eclesial de síntese de toda a tradição: sermos Povo de Deus em caminho. Os convites a certa desclericalização estão aí para quem os quiser ver e viver. Nasceram em cada casa, como cogumelos, verdadeiras igrejas domésticas, capazes de viver e celebrar Cristo no seu seio. Reinventaram-se rituais plenos de significado e de sentidos entre os mais próximos de cada habitação. A Alegria do Evangelho pode verter-se no cuidado da Casa Comum, em cada lar, precisamente através do tesouro que é a Família (e varro uma tríada de importantes escritos de Francisco…). Temos ainda algum caminho para andar mas estão a ser muitas as sementes colocadas na terra para gerarem, finalmente, batizados que, por o serem, são sacerdotes por Cristo, com Cristo e em Cristo…

4- Será de rever os ‘mandamentos da Igreja’?

A expressão ‘mandamentos da Igreja’ nunca foi da minha simpatia. Entendo melhor os mandamentos de Deus mas, mesmo esses, potenciados pela mediação eclesial, são tateamentos comunitários e pessoais muito complexos. Sempre preferi propostas a imposições. E é aqui que pode colocar-se em cima da mesa uma nova pedagogia eclesial: mais centrada na proposta a batizados responsáveis do que na deliberação dirigista. A exigência cristã é evidente mas ela há-de ser subida (ou descida?…) sempre e apenas se, for andaimada pela consciência pessoal exigente e interiorizada. Nos rituais como na moral, a fasquia não pode rastejar, mas pode se proposta em vez de imposta, porque assim fazia Cristo. Poderão dizer-me que sem regras e normativos entra a balda e a excessiva personalização. Não nego esse risco mas prefiro corrê-lo em detrimento do seguidismo cego e forçado. Queremos, será que queremos, que alguém vá à missa porque tem que ir? Não merece aquele altar da radical partilha do pão gente mais automotivada?

Há uma tensão evidente entre a riqueza da interioridade e a banalização da exterioridade, onde se podem inserir certos rituais, também religiosos. Este tempo de privação sacramental é uma clara purga de exterioridades, um convite à interioridade com Cristo, na nossa profundidade pessoal e coletiva, brotando da nossa sede e da interfragildade, que já existia, mas que o covid19 enalteceu. Todos sabemos do perigo da exterioridade das cerimónias e, portanto, da sua possível esterilidade. Ir à missa e ficar na mesma, sem crescimento interior, é o que não queremos nem cremos, como crentes em caminho.

5- Só uma Igreja que caminha com os mais pobres nos pode galvanizar

Só a Igreja dos pobres nos pode interessar. O Papa Francisco, a começar pelo nome que se deu, anda a semear. Tudo o que esta pandemia enalteceu foi o grito dos mais frágeis, que convocou universalmente todos os homens de boa vontade no planeta inteiro. Se somos todos frágeis, se somos todos buscadores, se somos todos pobres, pois a Igreja é dos pobres. Enquanto houver gente a sofrer, sem pão e sem amor, será tal a nossa inquietação aguda, a nossa mobilização central. A missa, é para nos fazer sair da missa em missão com os mais pobres, onde nos incluímos. Esta pandemia trouxe para a ribalta a atenção aos últimos, aos mais velhos, aos dos países mais vulneráveis, aos que clamam. O pão que se parte e reparte na missa é a fragmentação que nos parte o coração mas que, ao mesmo tempo, nos fascina pela agudeza da dádiva radical. É a celebração que nos impele a acudir aos mais necessitados. Essa, é, sem dúvida, a saudade do futuro que nos falta!

JP in Espiritualidade Textos 12 Maio, 2020

fazendo-me

Fazendo-me…

Sou um Homem

a fazer-se,

uma bilha em enchimento.

Sou um processo

em aberto,

ventoinha em movimento.

sou um livro

que se abre.

Sou escutante

de um recado.

Sou errante

procurante,

quando páro,

sou buscado.

Sou vivente

agradecido.

Sou morrente

renascido.

JP in Poemas 6 Maio, 2020

Ressureição como processo

A Ressurreição é muito mais do que um acontecimento. É um processo… Mais do que exterior – embora seja dádiva – importa a ressurreição que vem de dentro… Entendemos a maioria dos processos quando os tomamos por ontológicos. O mais crucial da fé cristã é que Jesus está a ressuscitar em nós…

JP in Espiritualidade Frases 4 Maio, 2020

Teletrabalho em pós-pandemia: uma verdadeira oportunidade para o b-work

Artigo saído no Público a 28 de abril de 2020

Leitura direta em:

https://www.publico.pt/2020/04/28/opiniao/opiniao/teletrabalho-pospandemia-verdadeira-oportunidade-bwork-1914066

Há um conceito no jargão educativo que nos poderá ajudar a situar: blended learning (b-learning). A palavra blended (mistura) tem origem na junção de líquidos em sede de fabricação de whisky. Do ponto de vista do ensino-aprendizagem, há muito que se reflete e vai praticando a salutar mistura entre dinâmicas presenciais e atividades mediadas digitalmente. Esta pandemia forçou práticas (ou aproximações) de e-learning “puro”, que poderão vir a constituir rotinas de boas e equilibradas misturas, adiante, nas nossas escolas e universidades.

Do ponto de vista laboral, a circunstância atual precipitou dinâmicas de teletrabalho, que surpreenderam muitos trabalhadores, patrões e organizações.

A retoma gradual das condições sociais e laborais trará excelentes oportunidades de blended-work (b-work), mistura de trabalho em casa, mediado teledigitalmente, com trabalho presencial, num local de congregação organizacional. Face a estes desafios, convém ter em conta:

1. Sem autonomia responsabilizante não há bom teletrabalho…

É preciso que se abandonem as lideranças infantilizantes, que não confiam nos colaboradores e insistem nas práticas de gestão focadas na monitorização instrumental, senão mesmo em certo policiamento. Há que delegar, confiar e avaliar, pedindo responsabilidade e medindo produtividades.

Donos de empresas e líderes de organizações podem e devem ampliar as suas práticas e corrigir alguns vícios, gerando mais confiança e menos controlo, no sentido estrito do tempo. Todos nós nos apercebemos de pessoas que se deram muito bem com as práticas de teletrabalho nesta crise, mantendo os níveis de produtividade e, em muitos casos, ampliando-os.

2. Cada trabalhador é um caso…

O pior que poderia acontecer a um processo de abertura a b-work era industrializá-lo. Na verdade, cada caso é um caso. Haverá perfis que se não dão com o teletrabalho: conheço casos, principalmente no feminino, que preferem separar as águas e viver no regime ‘trabalho é trabalho, casa é casa’. No outro extremo, existem pessoas que se dão maravilhosamente com o trabalho a partir de casa: são gente normalmente muito metódica e organizada que concilia e alterna com tranquilidade os planos laboral, familiar, doméstico e quotidiano. Depois há situações híbridas, que preferem precisamente a mistura e se dariam muito bem com esquemas mistos um, dois ou três dias em casa e o resto na organização, fisicamente. Poder-se-ia ainda colocar a questão dos trabalhadores, funcionários públicos e não só, a quem se não vê perfil de autonomia, com tendência para o ser esguio e irresponsável, do tipo quanto menos melhor. A questão é complexa mas poderemos especular que um encostado será sempre um encostado, presencialmente ou virtualmente. E pode haver surpresas de produtividade, se não no curto prazo, no médio ou longo, ao ensaiar confiança a quem aparentemente não a merece.

3. A ocasião gerou competências novas

Não há qualquer dúvida que o confinamento gerou competências que pareciam adormecidas. As questões técnicas facilitaram-se: troca de ficheiros e manipulação digital, plataformas de reuniões como o Skype ou o Zoom, autoaprendizagem de procedimentos processuais e buscas em ambiente virtual, etc. Advinha-se melhor ainda com possíveis benfeitorias técnicas (largura de banda, sistemas áudio e vídeo, etc.). Por outro lado, houve também uma autopromoção da gestão dos tempos e de muitos procedimentos de autodisciplina de cada um dos cidadãos retidos em casa (turnos para gestão doméstica e de tomar conta dos filhos, necessidade endógena de rotinas, etc.).

4. É preciso portas abertas, do lado da legislação e dos políticos

Nada será possível sem um quadro legal (também ele mais aberto a dinamismos de confiança nas relações laborais) e sem incentivos políticos a estas oportunidades. No funcionalismo público, em particular, as chefias precisarão de lastro legal para ampliarem as suas delegações, como, de resto, aconteceu, no sentido amplo, durante esta pandemia. Também os sindicatos poderão participar nesta abertura, quer pela via de colocarem o assunto na agenda, quer também se compreenderem que o b-work, não implica uma total desregulação e terá de manter claros, a par dos direitos, os deveres dos trabalhadores, agora em formatos mais flexíveis.

5. Oportunidade de alívio na pressão urbana

Há consequências óbvias de alívio de alguma pressão urbana. Desde logo no trânsito (imagine-se Lisboa ou Porto sem um terço do tráfego ordinário…). A ponderar, também, a diminuição de emissão carbónica, de acidentes, de tensões no quotidiano social. Poderia haver condições para habitar zonas mais rurais, ou nas cinturas urbanas mais distantes das grandes cidades ou mesmo em regiões absolutamente interiores, se a componente laboral digital assumida fosse em grandes proporções. Oportunidades de regresso à Terra, no melhor dos sentidos.Trabalhadores mais felizes e emocionalmente equilibrados produzirão mais e melhor, deprimirão menos e ampliarão os potenciais de identidade e corporeidade das organizações. A sociedade será melhor e mais justa…

6. A vida pessoal e as dinâmicas familiares podem agradecer

Todas estas circunstâncias possibilitam igualmente uma revisão e uma requalificação de muitas relações (do eu com o eu, do eu com o tu e do eu com os outros). Como bastantes pessoas foram ensaiando nesta quarentena (porventura não desse logo, no início, mas gradualmente), o teletrabalho tem um potencial de otimizar momentos e encontros vários…

Por isto mesmo a produtividade tem de ser vista num nível mais profundo, que contemple mas ultrapasse a mera métrica contabilística do número de objetos produzidos. Trabalhadores mais felizes e emocionalmente equilibrados produzirão mais e melhor, deprimirão menos e ampliarão os potenciais de identidade e corporeidade das organizações. A sociedade será melhor e mais justa…

Está nas nossas mãos, enquanto sociedade, aproveitar para inovar estilos de vida e de trabalho. Há que concretizar a máxima, muito badalada mas nem por isso banal: fazer de uma crise uma oportunidade.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

JP in Textos 30 Abril, 2020

nada é grave

“nada é grave” poderia ser um pulsar existencial, um mantra, um respirar interior. Em rigor, vivemos e vamos treinando essa atitude. No limite, poderemos, moribundos, morrer como vivemos, fruindo esse segredo e essa prática: “nada é grave”…

JP in Frases 28 Abril, 2020

pensando que era o jardineiro

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Lc 24, 13-35

«pensando que era o jardineiro»

Um dos traços comuns das aparições de Jesus é o facto de Ele aparecer, muitas vezes, “disfarçado”. É o caso do diálogo travado com Maria Madalena. Ela julga estar a falar com um jardineiro e com ele desabafa o seu desalento e a sua preocupação. É questão teológica curiosa e complexa esta de um Deus que quase se esconde. Revelar, aliás, é ir tirando o véu… Traduzível na vida dos cristãos é a pergunta metafórica: quantos jardineiros se atravessam sem que os vejamos, anunciando a ressurreição?

JP in Espiritualidade Frases 26 Abril, 2020

cresceremos todos

Em tempos pascais de pandemia global e de desafio universal de maturação coletiva, brotante da fragilidade humana, seria uma boa síntese da esperança cristã e da ressurreição o seguinte lema: “cresceremos todos!”.

JP in Frases 24 Abril, 2020

vergo-me

Vergo-me

 

Vergo-me

em silêncio

face

ao espectáculo

da dor.

Tiro sandálias

engulo sílabas

verto lágrimas

… e páro!

Fico,

em silêncio,

cravado

onde estou.

Todo inteiro,

agarrado.

Abraço

aquele tempo,

tão instante

quanto eterno

… e permaneço,

vergado,

… em silêncio!

 

28 de Janeiro de 2011

JP in Espiritualidade Poemas 22 Abril, 2020