Paiva, (2025).“Cultura Científica e populismo”. Jornal Público (08-10-2025).
Disponível no Jornal Público em
https://www.publico.pt/2025/10/08/opiniao/opiniao/cultura-cientifica-populismo-2150012
A cultura científica entrou no nosso ADN, na nossa forma de vida e de pensamento. Ao longo dos últimos séculos, a ciência moderna, essa empresa historicamente recente, pôde fazer de todos nós pessoas melhores, com mais audácia sobre o funcionamento do mundo, com mais aberturas e com mais esperança média de vida. Como todos os eventos congéneres, a ciência viveu e vive na corda bamba ética de servir a bondade ou a ganância humana. Na sua essência e na grande maioria das suas manifestações tecnológicas, a ciência pode ser considerada um bem cultural e um bem pragmático.
O método científico, nos bastidores e nas práticas científicas, apesar das inevitáveis sombras de qualquer construto humano, é uma luz: carrega um lastro de beleza, um lastro de conhecimento, um lastro de valor da realidade, um lastro ético de bem e um lastro inegociável de liberdade no seu modo de acontecer.
Muitas destas dimensões, que tínhamos como inegociáveis, estão a ser ameaçadas, mesmo no mundo ocidental. Um dos ataques mais óbvios à ciência está a realizar-se, tão discreta quanto escandalosamente, por via de um fenómeno sociopolítico que, a menos de melhor nome, podemos designar por ‘populismo’.
Não conseguiríamos num pequeno artigo desta natureza desenvolver as complexas teias nem do populismo nem da própria natureza e manifestação da ciência. Contudo, de forma assumida e deliberadamente sintética, apontamos algumas evidências da forma como o populismo representa, em certo sentido, a antítese da ciência e, assim, um ataque sem precedentes aos pilares civilizacionais humanistas:
- O que interessa são as perceções, não os factos
O bom populismo vive do alarme das perceções independentemente do que a realidade realmente realiza e mostra. Cavalgando na espuma das redes sociais e da instantaneidade intencional, transforma-se a perceção da não-realidade numa realidade alternativa, imune aos factos. A ciência, ao contrário, impõe a si mesma uma coerência constante com a realidade. O que não está ‘pousado em cima da mesa’, o que não é real, não é objeto da ciência e não pode ser estudado, nem, muito menos, ser afirmado como uma evidência científica.
- Senso comum e profundidade
O populismo alimenta-se do senso comum e potencia-se naquilo que de mais cutâneo pode ser convocado. A humanidade, aquilo que somos e podemos ser, é sempre mais profundo do que a superfície. Para um populista, o que parece é. Mas, em ciência (como na humanidade…), há que ir mais fundo. É crucial e ilustrativa a experiência de Galileu Galilei, nos inícios históricos da ciência: o senso comum diria que uma pena e uma pedra cairiam da torre de Pisa a velocidades diferentes, chegando cada um de sua vez ao chão. Mas a imaginação criativa e a superação do senso comum levou este génio a pensar que ambos os corpos poderiam cair à mesma velocidade, descritos pelas mesmas leis físicas, caso não houvesse resistência do ar. Superar o senso comum é, muitas vezes, ver mais além e estar mais perto da verdade sobre o funcionamento do cosmos.
- A insignificância da experiência
Confirmar com a experiência (generalizada e generalizável) uma determinada ideia (ou perceção) é para o populista uma insignificância. Já para fazer ciência todas as articulações lógicas, suposições, teorizações e previsões terão de ser assumidamente peneiradas de forma radical pela experiência. É por isso que o cientista tem o laboratório como uma espécie de espaço sagrado. As ideias de Galileu sobre a queda dos corpos só se fizeram conhecimento científico quando um tubo de vácuo com uma pena e uma pedra confirmaram que tais corpos, sem resistência do ar, caíam, de facto, nos mesmos tempos. O laboratório populista é uma inexistência e confirmar informação é tudo aquilo que um populista não quer fazer.
- A irrelevância da matemática
Para um populista uma área de 30 m2 é idêntica em valor numérico a uma área de 70 m2. Isto é, em linguagem matemática populista 30 = 70 e isso não constitui problema algum. Uma das noções que garantidamente nunca atravessa a propaganda populista é uma ferramenta enorme nas ciências exatas: a ordem de grandeza comparável. Mas o equívoco populista vai matematicamente muito mais longe quando toca a probabilidade e a estatística: para um populista, qualquer evento (mesmo que não representativo da realidade) pode ser acriticamente generalizável. Há um vacinado contra a covid-19 que morreu? Então a vacina contra a covid mata toda a gente! Há um migrante que recebe um subsídio e não é um trabalhador ativo? Então os migrantes recebem subsídios e não trabalham! Há alumínio na solução da vacina do tétano? Então a vacina do tétano intoxica de alumínio! (não importa a noção de dose nem de concentração…). Para um populista dinâmico, a probabilidade e a estatística são assaltadas por malabarismos percecionais e a parte, sem cerimónia, assume a figura do todo. Toda esta manipulação dos números favorece o aproveitamento mais sórdido do populismo que a história não se cansa de gritar: o estabelecimento de bodes expiatórios. A ciência, pelo contrário, tem na boa relação com a matemática e com os números sólidos o suporte mais seguro para o estabelecimento das suas leis, para a construção dos seus padrões e para a sua capacidade preditiva, com efeitos absolutamente inegáveis e extraordinários na qualidade da vida humana.
- O alheamento à consensualidade e à abertura
A ciência é um processo dinâmico que vive da consensualidade. Para uma afirmação ter ‘cheiro’ científico, tem de ser trabalhada com profundidade e persistência, em procuras de consensos entre pares que demoram muito tempo e carecem de argumentação lógica profunda e sustentada. Mais ainda, depois de um lugar científico ser consensualizado e assumido, ele permanece intrinsecamente e antidogmaticamente aberto e sujeito à refutabilidade futura. Há um pulsar de abertura no trilho científico. A afirmação populista não se sujeita a esse escrutínio: lançada, colhida e disseminada nas redes digitais, torna-se uma ‘verdade’ instantaneamente estabelecida e de alcance universal imutável.
- O ataque invasivo à liberdade
Muitos cientistas (e não cientistas) não se apercebem, mas a ciência carece endemicamente de liberdade para se fazer. Liberdade de pensamento e liberdade de ação, numa independência radical de outros poderes. Os instintos populistas já edificados e em ação navegam em águas opostas. O poder estatal pode, por exemplo, lançar práticas sociais e políticas que se opõe à ciência e desdizê-la na praça pública e nas deliberações. O dióxido de carbono, afinal, não causa efeito estufa. Ou, num ludibriar estatístico sem precedentes, acabar com o uso de paracetamol na gestação porque uma grávida que tomou paracetamol teve um filho que foi diagnosticado com autismo. Ou, mais sofisticado ainda, financiar a ciência não de acordo com o mérito dos projetos de investigação, mas em consonância com as opiniões expressas e lugares políticos dos respetivos protagonistas e instituições.
Cada linha e cada entrelinha do populismo é uma ameaça não só à ciência, mas ao humanismo. Torna-se um imperativo existencial dos nossos dias combater o populismo, com as armas próprias da ciência, nomeadamente a procura do rigor, a sustentação lógica, a vinculação à realidade, a profundidade, a abertura, o diálogo, a paciência, mas também a inteligência afirmativa, corajosa e lúcida. Esta luta é uma demanda para a ciência, para a divulgação científica e para a educação científica. Nunca a ciência, cada vez mais enculturada, esteve num palco tão assumidamente político. E a ciência terá de saber fazer este papel, também, mas não só, pela sua própria sobrevivência.