a memória da morte pode fazer viver…

Alfredo Dinis foi(é) um amigo. Padre jesuita, com quem partilhei aventuras literárias, humanas e cristãs. Escrevi, no dia da sua morte:

Tive o previlégio de o acompanhar intensamente nos últimos tempos.
A par da sua intelectualidade fiolosófica e da forma como emprestou radical racionalidade ao entendimento e à vivência da sua fé cristã, era um homem simples, sabedor de que é nas pequenas coisas da vida que a existência – amorosa – ganha sentido.
Tinha particular interesse, empenho e afeto no exercício desempoirado de conversar sobre a fé com os não crentes. Sempre de forma convicta mas aberta e lúcida.
Deixo-vos dois pensamentos que me legou na última viagem que fizémos, há cerca de uma semana, à sua terra natal (Tramagal), onde era muito estimado:
“Procurei como filósofo compreender o mundo. Estranhamente, sinto que o mundo tem um lado incompreensível. O mundo talvez exista não só para ser compreendido mas para ser amado!”
“A minha vocação sempre foi sólida e a minha fidelidade «fácil». Vi e sofri com muitas idiosincrasias na Igreja e nas organizações, mas Cristo, em quem me radiquei, nunca me decepcionou”.
Na recta final, inventava sorrisos fazendo florir amor das suas sementes de dor. Principalmente no fim, não se cansava de agradecer, a tudo e a todos.
Pessoalmente, tomo como inspiradora essa atitude de agradecimento constante. Desejo continuar a minha amizade com ele, precisamente fazendo por viver (e depois morrer)… a agradecer! Muitos encontros, hoje e sempre, se esculpem de gratidão.

 

JP in Espiritualidade Frases 2 Novembro, 2020

ainda morte…

A fuga para a frente pode não ser a chave da boa morte. A (pseudo) fuga mais libertadora é precisamente a receção da vida como uma Graça, uma dádiva, uma promessa de que a fragilidade é a penúltima experiência. A isto se chama Fé.

JP in Espiritualidade Frases 14 Julho, 2020

moribundisse

Moribundisse

 

Na moribundisse

desse instante

…longo instante…

se radicaliza

a angústia,

a esperança,

a dúvida e

a certeza.

Ali se joga

em escala

intensa,

em alto grau,

em câmara lenta

rápida

o que a vida

teceu

no tempo.

…Desde o útero

desde o ventre

do cosmos.

Fornos, 4 de dezembro de 2017

JP in Espiritualidade Poemas 6 Março, 2020

homenagens

Homenagens

 

 

Prescindo

hoje e amanhã

(mesmo em cinzas)

de uma qual-quer(?)

homenagem.

Prefiro a memória

Simples e discreta

De um qual-quer(?)

Rasto de amor.

Custa-me ver a fila

(a logística, a mobilização)

para saudar uma honra.

Use-se tal energia

Para abraçar alguém,

Para amparar

Uma qual-quer(?)

pessoa frágil.

Acresce ainda

Que nada mereço.

E a haver uma honra

Seja endereçada

À graça de Deus

Que, por graça também,

Me usou (quando eu deixei)

para se espelhar.

 

2018

JP in Poemas 14 Fevereiro, 2020

testamentos prisioneiros

Não falo dos testamentos materiais, legitimados em ambiente notarial. Falo das vontades deixadas antes de morrer. A menos de um libertador desejo de sonho largo, apontador de pacificações e outros voos sem rumo, vejo com maus olhos os desejos excessivamente concretos dos que partem. Cheiram-me a prisões aos que ficam. Talvez melhor entregar tudo à confiança do discernimento dos que nos assistem partindo. Se morrer como quero viver, desejo deixar os outros livres para as escolhas que tiverem que fazer…

JP in Espiritualidade Frases 4 Novembro, 2019

morrente

Sou um morrente, antes mesmo de ser moribundo. Ou é um drama sem sentido ou um desafio. Escolho o segundo, este de ir vivendo-morrendo por amor.

JP in Frases 10 Janeiro, 2019

(não) devemos respeitar a vontade dos já mortos

Ainda em tempo de de-funtos (palavra de carga forte na sua raiz: deixar de funcionar…), uma reflexão sobre os que partem e a nossa relação com eles. Ouvi (ironicamente, numa homilia) que “devemos respeitar a vontade dos mortos”. Explícito a minha discordância. Os mortos que tenham tido desejos direcionistas, deveriam ter feito por executar em vida (ou testamentar) o que, na sua liberdade, entendiam por bem exercer. Com as ajudas que conseguissem, incluindo a nossa, bem entendido. Uma vez sendo não vivos, uma outra realidade se poderá associar à sua existência, certamente mais perto da verdade, do amor e da liberdade. Seria irónico (e conheço casos…) que alguns mortos continuassem a manipular os vivos, com desejos (ou caprichos…) manifestados antecipadamente. Há gente que deixa legados pantanosos do tipo ‘não fales com aquele’, ‘não vendas este terreno’ ou até ‘vai para este ou aquele curso’. São prisões sobre a liberdade de terceiros, proibidas pela própria liberdade. Pode estabelecer-se nos que ficam, principalmente em pessoas mais frágeis psicologicamente, um dinamismo de culpa espartilhante, que gera atavismos arrastados e desnecessariamente sofredores.

JP in Espiritualidade Frases 6 Novembro, 2018

morte suave

Morte suave

Dormindo,
calmo
termino aqui
com paz
uma última morte
depois de tantas outras.
Passo
renascido
arriscando
uma esperança
continuada.
Abraço
um braço
que já me tinha sido
estendido.
Recebo
de forma agradecida:
a vida que era morte
…a morte que era vida.
JP in Espiritualidade Poemas 2 Novembro, 2018

ensinamentos da terra

Sempre que posso falo com a natureza e vejo que ela tem muito para me dizer: a paciência, a beleza, a abundância, a contingência e, talvez principalmente, a morte das plantas rendidas ao nitrato que são, para o Natal de mais vida…

JP in Espiritualidade Frases 1 Outubro, 2018