ressureição e futuro
Diz bem Pannemberg sobre o dinamismo da ressurreição: adianta o definitivo sem fechar o futuro. Certeza de sede e de água. Paradoxo vivível…
Diz bem Pannemberg sobre o dinamismo da ressurreição: adianta o definitivo sem fechar o futuro. Certeza de sede e de água. Paradoxo vivível…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 8, 27-35
tome a sua cruz e siga-me
Jesus não convida a que se suprima a cruz mas a que se tome a cruz. Também não parece existir aqui convite a fabricar cruzes ou a ir buscá-las onde não estão… Basta a cruz de cada dia… A cruz, num sentido pascal, é a realidade existente, contingente, insuficiente, incompleta, que existe dentro e fora de nós. A cruz é um “produto” indissociável da nossa condição de finitude. Os humanos que não têm fé têm também a sua cruz, neste sentido do preço da finitude. O que é distintivo da fé, portanto, não é a cruz. É a paixão e o amor com que nos rendemos a tomar a nossa cruz, que inclui as cruzes da humanidade…
Muitos não-crentes, sobretudo alguns que trabalham e pensam na área da ciência, estão convencidos de que a religião continuará a recuar à medida que a ciência avança. Um dia, elaboram, tudo o que há a explicar estará explicado pela ciência e a religião desaparecerá completamente. Apontam muitas vezes o exemplo dos países nórdicos, altamente desenvolvidos, e onde a religião parece estar quase em vias de extinção. Ora, o que os estudos científicos sobre a evolução dos valores europeus vão mostrando é que o declínio da religião se dá ao nível da frequência das igrejas, mas não ao nível das preocupações individuais sobre o sentido da existência. É que mesmo nos países nórdicos europeus, e em outros países desenvolvidos noutros continentes, as pessoas continuam a interrogar-se sobre o sentido da existência. E, como afirmou L. Wittgenstein, os «problemas da vida» permanecem sem resposta, por maior que seja o progresso científico.
Nas culturas, na história, na vida de todos os dias, o outro pode: ser negado (tribalismo), ser absorvido (imperialismo) ou ser reconhecido (pluralismo). Cada um que reconheça em si, as suas zonas ainda ativas de tribalismo e imperialismo…
Gosto do termo “desobstaculizar” na metáfora apostólica. É libertar obstáculos para entrar a luz, o pouco que podemos fazer… O resto, é militância religiosa duvidosa…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Slm 145
louvarei o Senhor toda a minha vida
Louvar é bem dizer e pode ser um bom respiro. Fixemo-nos na expressão final do verso do salmo, isto é: “toda a minha vida”. A sociedade (não só hoje mas desde sempre), como a própria contingência do homem, é muito virada para o provisório. A nossa felicidade, por outro lado, tem muito a ver com uma certa esperança e confiança no futuro. Sem deixar escapar o presente (antes potenciando o “já”), vale a pena viver, se a nossa vida for uma vida com futuro! Louvar o Senhor, hoje, é bom. Melhor ainda, expressão de fidelidade libertadora, é louvar o Senhor, hoje, querendo também louvá-Lo “toda a minha vida”. Ser feliz, não só pelas (tantas) coisas boas que tenho hoje, materiais e espirituais, mas, principalmente, porque a fé me dá a graça de saber que serei feliz amanhã, aconteça o que acontecer…
Há uma tensão infinda entre ajuda e promoção de autonomia nos dinamismos pedagógicos. Se a missão do professor é, por um lado, ajudar o aluno, não é menos verdade que, quanto mais autónomo for o indivíduo, mais eficaz será a educação. Mas ninguém nasce autónomo e há que ir escolhendo a medida certa, no sentido de conseguir a maior autonomia possível. A ajuda preciosa, afinal, de pais, educadores e professores é a ajuda para a autonomia!
Paiva, J. C. (2021). Eu e a dona Aurora: ambos cegos tateantes. Site Ponto SJ, 6-06-2021.
Disponível aqui
Noutro dia vinha da feira, a pé, numa caminhada de uma horita. Coisas da vida aldeã. Uma rampa enorme apresentava ao longe uma senhora vergada, puxando um carro de compras com uma mão e arrastando-se com uma bengala na outra mão. Impressionava a sua resiliência. Ofereci-me para levar o carrinho até sua casa, imaginando que morava no topo daquela colina. Hesitou primeiro, deixou depois. Explicou-me onde morava, lá deixei as compras e segui viagem. A partir daqui é imaginação.
Quando a dona Aurora chegou a casa, aliviada, mas mesmo assim cansada, tomou um copo de água, suspirou, sentou-se no sofá e rezou: “agradeço-te, Senhor, por me teres enviado um anjo que me trouxe as compras e me aligeirou o jugo”.
As intercomunicações celestiais entenderam por bem informar o próprio anjo, eu mesmo, daquela prece. Comecei a processar aquela informação, não tanto por ter sido eu o anjo. Porque às vezes também sou mafarrico e porque os anjos é que lucram, mais do que os que são alvos das suas setas. A minha matutatação era intelectual, teológica, cosmovisionária. Permito-me partilhá-la – tal matutação – não tanto pelo seu processo, não tanto pela tese em si, mas pela sua explicitação final. É no ponto de chegada, que dá título a esta reflexão, que pode morar alguma centelha.
A dona Aurora imagina o Céu onde Deus monitoriza o mundo. As cortes do paraíso estão ao serviço do Senhor, que manda aqui e ali fazer alívios e intervenções, curas e auxílios. Fosse Aurora extrapolada culturalmente para adiante e imaginaria uma central robótica cosmocontroladora, com câmaras de filmar expiando todos os passos e cabelos do mundo. Uma panóplia de circuitos integrados que ativariam vários anjos, para as ações que comprovariam os sinais divinos.
Ora eu tenho outra cosmovisão, outra teologia e outro entendimento da ação de Deus no mundo. Impressiona-me o mal e o bem, a ferida e a bênção, a dor e beleza, a morte e a vida. Mas há um traço de liberdade, do horizonte do risco de Deus, que é mistério, mas que existe. É o resultado prático desta vida que vale a pena e que resulta da fé de Deus em nós e no mundo, amorosamente criado para todos. Deus arrisca. Arrisca fazer de homens anjos, arrisca a liberdade de todos e de cada um. Arrisca até o pulsar da natureza e do cosmos. Por isso a Terra treme e os vulcões bufam. Arrisca a dor da fricção das vontades e dos corpos. E há acidentes… Arrisca convocar-nos. Cria e está mas, ao mesmo tempo (que paradoxo!), deixa ar para o respiro da liberdade. Mais ainda, convoca homens e mulheres para construir o Seu sonho e não se impõe e talvez nem sequer peça, antes se propõe. Por isso também há doenças mas há quem salve (e se salve…) curando-as… É também por isso, porque Deus só pode o que o amor pode e o amor tece-se da íntima liberdade, que há faltas de comparências de anjos em muitos teatros de incompletude. Em alguns desses cenários de injustiça, falto lá eu… e com culpa.
Deste meu constructo – sim, talvez fruto da razão, do fluxo greco-latino, do iluminismo, da ciência, da cultura deste tempo – sai também alguma ‘cerimónia’ na petição a Deus e na forma como reconheço os Seus sinais na minha vida e no circo onde se movem as criaturas humanas. Não peço que me apareçam anjos nem que as doenças me larguem. Não peço chuva na seca nem sequer que o covid19 se vá embora. Posso desejar alívios, mas impõe-se-me esta abertura ao que vem, de mãos vazias. Impõe-se-me pedir para receber o tudo em nada e o nada em tudo. Impõe-se-me pedir que veja mais longe, que respire mais puro e que alcance mais alto, tanto na saúde como na doença, tanto na riqueza como na pobreza, tanto na honra como na desonra. Peço por mim e por todos, peço certa salvação e a nossa salvação. Peço para saber estar no silêncio e na soledade de hoje e de amanhã. Peço paz, adesão, fidelidade, coragem e alegria. Peço para saber pedir nada. Portanto peço.
Poderei mudar os meus horizontes mas, provavelmente, não vou mudar radicalmente a minha forma de ver o mundo, a minha forma de rezar e pedir, a minha forma de me entender e abraçar o que existe. Eu e a dona Aurora vemos o mundo de forma diferente, por isso também Deus e as coisas de Deus sobre o mundo. Somo flores diferentes de um mesmo jardim, ângulos diferentes a olhar um mesmo destino. Somos mundo, somos comunidade, somos porventura Igreja (com I grande e aberto), eu e ela. Nenhum melhor que o outro, ambos cegos tateantes de um Deus que se não consegue dizer. Somos anjos que se cruzaram num instante de paraíso.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 7, 1-8
negligenciam os mandamentos de Deus e apegam-se às tradições dos homens
As palavras de Jesus para os fariseus apresentam um enorme potencial autorreflexivo para a Igreja. O apego a certa tradição, como se tal tradição fosse o próprio Deus é, ainda hoje, aqui e ali, um problema agudo no seio da Igreja. Não se nega o valor da tradição mas evidencia-se, pelas próprias palavras de Jesus, o perigo de, em nome dessa tradição, se negligenciarem as propostas cristãs e, especificamente, o mandamento do amor ao próximo. Hoje como ontem há fariseus por muito lado. Há também, porventura, um “fariseu” dentro de cada um de nós…
“Ainda não sei, ainda não consigo, ainda não sinto… “. Vamos morrer nestes termos, cheios de “ainda nãos”… Portanto, a graça a pedir é saber estar nesta bela e oferecida barca do “ainda não”…