…revelastes aos mais pequeninos

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mt 11, 25-30

Não convém confundir esta passagem evangélica com um convite à ignorância, ao simplismo ou à superficialidade. Mas há um sentido evangélico que nos alinha em ser “pequeninos”. Evitar ser (ou melhor, achar-se…) “sábio e inteligente” é evitar só contar connosco próprios, prescindindo de Deus e dos outros. Somos “sábios e inteligentes” quando achamos que só nós é que sabemos e não acolhemos humildemente cada pessoa, com os seus limites e riquezas. Ser “pequenino”, à maneira do Evangelho, é ser pobre e, portanto, aberto à novidade de nós mesmos, de cada um (outro) e do cosmos.

JP in Espiritualidade Sem categoria 4 Julho, 2020

manipulação, embriões e vida

A cultura de embriões com desleixo de óvulos fecundados ou a clonagem são questões sensíveis. A alquimia da transmutação pessoal é coisa antiga e tem as suas pontes com algumas buscas de manipulação da vida contemporâneas. «Não matarás» — é este um dos mandamentos; «crescei e multiplicai-vos» — é outro. O cristão aceita que a vida e a morte se encontram nas mãos de Deus: consequentemente, o dom de gerar a vida procede de Deus. O que se pode fazer é essencialmente distinto do que se deve fazer, porque nem tudo quanto se pode fazer se deve fazer: um meio não implica um fim. Não será isto a (bio)ética? Nem sempre a humanidade teve poder sobre a vida: exercê-lo matando é a sua expressão mais aviltante. A manipulação artificial da vida humana, ainda que materialmente possível, representa um afastamento do essencial da fé num Deus criador.

JP in Sem categoria 10 Junho, 2020

Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Slm 21

«Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?»

O salmo 21 anuncia este grito que o próprio Jesus viverá na cruz. Cristo – e todos nós – morre como vive, em formato de pergunta… Em domingo de antecâmara da paixão, levamos ramos como que antecipando a festa que virá depois da sombra, da morte, do túmulo e da solidão. O Deus que aparentemente ‘se esconde’, tem amparos racionais no risco da liberdade em que esse mesmo Deus nos quer criar e amar. Mas é principalmente na vida, nas páscoas de todos os dias, que vamos poder ir respondendo aquele grito: exercitamos que o abandono, nunca é a última palavra. Esta é a nossa fé, particularmente urgente e íntima, nos dias que vivemos…

JP in Sem categoria 4 Abril, 2020

Açambarcamento digital…

Artigo no Jornal Observador em 22 de março de 2020, que pode aceder aqui.

Covid19 e estrangulamento das vias digitais: é urgente sensibilização, campanhas e normas para o teletrabalho 

Se as crises são oportunidades, a otimização dos procedimentos digitais é uma delas. O seu uso com critério salvará a sua causa. O seu abuso descontrolado e desregulado, arruinará as suas promessas!

Nesta crise que nos pode fazer crescer, pessoal e civilizacionalmente, começamos a ter algum tempo para nos dedicarmos, seletivamente, a problemas novos sem receita, de hoje e de amanhã.

Fruto de alguma reflexão, mas principalmente da experiência quotidiana, começam a emergir agudos problemas com a largura de banda e são óbvios os estrangulamentos de sinal.

Na Universidade do Porto, onde leciono, estão a ser implementados de forma massificada estilos de aprendizagem mediados digitalmente. Há alguns anos que a nossa universidade vem apostando no que genericamente se designa por e-learning e é impressionante notar a prontidão com que a nossa instituição promoveu os meios e a formação dos docentes, a este nível. Hoje mesmo fomos confrontados com a possibilidade legal de realizar provas de mestrado e doutoramento on-line, o que será ótimo para darmos continuidade à nossa docência e atenuarmos os danos deste retiro forçado. Na segunda-feira próxima, em particular, começarão de forma ainda mais acentuada as aulas on line.

Em paralelo sei bem que outras universidades e todas as escolas de todos os níveis de ensino se preparam para generalizar o ensino-aprendizagem à distância. Outras instituições, em dinamismos de teletrabalho, estão mais ou menos em prontidão para prestar muitos serviços.

Há muitos constrangimentos associados a este desafio, desde a formação dos docentes à reatividade de alguns aprendentes, passando por eventuais injustiças devido a grande variabilidade e democraticidade dos acessos a recursos. Mas intuo que será outro o problema principal, precisamente o estrangulamento da internet.

Podemos e devemos antecipar-nos e, em paralelo e por vários caminhos, criar condições de priorizar para “servir serviços”, todos os dinamismos digitais, no horário de expediente das 9h às 18, em dias úteis:

  1. Apesar da dificuldade técnica de verificar a sua implementação, decretar a proibição de acesso por via digital, dentro do horário de expediente determinado, a plataformas lúdicas que incluam práticas como download de filmes, jogos, redes sociais de comunicação com ficheiros pesados, etc..
  2. Pedir a algumas empresas que ajudem técnica e comunicacionalmente neste desiderato (a Netflix e outras plataformas congéneres já estão a baixar a resolução de alguns recursos mas é tudo ainda muito insuficiente).
  3. Implementar campanhas publicitárias de promoção desta causa. Poderiam seguir um slogan do tipo “liberta a rede para servir” e ter até algum dramatismo em algumas frentes comunicacionais (por exemplo, “enquanto fazes o download de um filme, falha a comunicação digital num hospital e perde-se uma vida”).
  4. Valorizar e incentivar as pessoas a procurarem momentos lúdicos com recursos ora mais clássicos (como jogos de tabuleiro ou livros) ora off line (DVDs, discos duros locais, etc)
  5. Outras medidas técnicas de gestão de redes que consigam mitigar esta problemática.

Sem estas e outras medidas haverá, com toda a certeza, a fragilização decepcionante de uma potencialidade enorme oferecida pela mediação digital nas suas virtudes de atenuar os impactos desta crise e até de promover práticas mais humanizantes, com enorme futuro. Se as crises são oportunidades, a otimização dos procedimentos digitais é uma delas. O seu uso com critério salvará a sua causa. O seu abuso descontrolado e desregulado, arruinará as suas promessas!

JP in Sem categoria 24 Março, 2020

Regras para ordenar-se face às notícias sobre a COVID-19

J. C. Paiva, Regras para ordenar-se face às notícias sobre a COVID-19 Site PontoSJ (que se recomenda…). 18 de março de 2020.

Disponível aqui

Oito regras claras que nos ajudam a não perder nem o norte, nem o critério enquanto navegamos na imensidão das notícias.

Estar informado é um bem potencial. Mas, na bonança como na tempestade, na crise mais aguda como na crise contínua da vida, importa ter critério e usar da informação tanto quanto nos conduz à finalidade para a qual estamos amorosamente a ser criados.
Apresentamos um conjunto de regras/sugestões, na esperança de ajudar. Compreendemos as tentações de excesso, também por nós vividas. Por isso alinhamos, antes de mais para nós mesmos, umas dicas orientadoras. Para que as notícias, sendo água, não nos inundem nem afoguem, mas nos reguem moderadamente, para dar fruto sobre a realidade que vivemos:

1- A dose importa
Todos nós, nestes tempos conturbados, tendemos a abusar da dose noticiosa. É compreensível mas é duvidoso querer saber tudo e a toda a hora. Esta ânsia pelas últimas notícias desfoca-nos da atenção à realidade presente, do tempo necessário para saborear, refletir e integrar.
Valerá a pena planear os tempos de recepção de notícias e ser fiel a esse propósito. Por exemplo, talvez baste um e apenas um telejornal por dia, uma leitura de um ou outro artigo de opinião, se possível em horas pré-determinadas. Que tal uma leitura de artigos de manhã (depois e não durante o pequeno almoço, desejavelmente a seguir a um momento meditativo/orante) e o telejornal das 20h ou das 21h, apenas?

2- As fontes importam
Preferível jornais de referência e televisões menos bombásticas. A título de exemplo, têm merecido incontestável consideração o Jornal Público e o telejornal da SIC. Estas fontes já selecionam, por sua vez, fontes cientificamente credíveis e peritos bem colocados. Fazem um trabalho de seleção noticiosa de várias amplitudes e sensibilidades. Seria uma tentação sermos nós a filtrar a informação e, se nos aventurarmos a fazê-lo, arriscamo-nos a uma imersão pouco respiradora.
Embora possa parecer um pouco rígido, talvez valha a pena optar por não valorizar as redes sociais como fonte de notícias. Aí, ao contrário, o filtro e o critério são absolutamente erráticos…

3- E se as redes sociais fossem só para ajudar?
Será excessivo pedir a quem se move muito nas redes sociais para as abandonar neste tempo (ainda que alguns possam entender por bem essa defensividade radical), mas sugere-se que estas redes tenham filtro receptivo e de emissão. Que se escute, leia, veja e valorize apenas o que leve a um bem maior. Que se ‘post’ apenas o que puder ajudar (eventos difundidos no ponto sj ou campanhas de solidariedade credíveis, por exemplo).

4- O que é importante e o que é menos importante
Há uma ‘auto-cusquisse’ endémica que nos ataca a todos nestes momentos. Tantas vezes nos deixamos enganar e valorizamos equivalentemente o que tem importâncias muito diferentes. Mais ainda, convém ativarmos uma espécie de lupa sensível para as boas notícias e sermos capazes de procurar e depois valorizar interiormente as boas notícias: os esforços heroicos, as procuras de essencialidade, as expressões de solidariedade, os pretextos de reflexão global e melhoria pessoal e coletiva.

5- Levar as notícias à oração
Para um crente, Deus não mete férias nem entra em crise. A afirmação da fé vivida é precisamente a de um Deus connosco, que caminha e nos solicita a ser as Suas próprias mãos. Levar as notícias à oração confunde-se com levar as notícias à vida. Podemos ensaiar a esperança e a confiança, lembrar os outros sofrentes e, principalmente, diante de cada notícia que fez eco em mim, pedir a confiança da solidez e oferecer a fragilidade e a força de que somos tecidos para aliviar vários jugos.

6- Não deixar de ter acesso a outras notícias, a outras leituras e a outras visualizações
Não esquecer de ler outras notícias, visualizar outros filmes, descansar em tantos livros, assistir a outros debates e escutar tantas outras melodias. O ponto sj, em particular, está a organizar-se para interessantíssimas ofertas.

7- O silêncio traz boas notícias
Um apelo à paragem, ao silêncio e à meditação. Nem no rebuliço do stress quotidiano nem nas crises mais agudas se torna óbvio o apelo ao silêncio e à meditação. Porem, quer ali quer aqui, nada há mais urgente e fecundo do que algum silêncio de encontro. Desse silêncio, desejado, praticado, disciplinado (e, porventura, apenas muito depois, gozado) sopram sempre boas novas…

8- Estar atento, com critério e com defesas, é um estado de vida
Há um estado ontológico, próprio do ser humano e particularmente da existencialidade crente, que norteia todo o critério, também o da filtragem noticiosa, hoje e sempre: cada crise é um desafio, cada ferida é uma potencial bênção, cada acontecimento, cada notícia, pode ser integrável, levar ao todo e ao Tudo do ser… e fazer crescer! Neste sentido, o ambiente vivido na crise do coronavírus é “só” uma vivência mais concentrada da esperança que nos apoia e nos liberta, todos os dias e em todas as circunstâncias. Tal intensidade é bom pretexto de arrumação da casa, exterior e interior. Que as notícias, no modo certeiro de as autogerir, nos ajudem nesta limpeza…

JP in Sem categoria 20 Março, 2020

a “não palavra” necessária

Se não houvesse já benefício no tempo presente para o silêncio (e a experiência confirma-o como muito útil…), teríamos o seguinte argumento teleológico, que justifica o treino da “não palavra”: o encontro face a face com Deus, já aperitivado aqui, terá a palavra como insuficiente ou mesmo desprezível…

JP in Sem categoria 12 Fevereiro, 2020

Se para uma missa basta um padre, para um padre não bastará uma missa?

J. C. Paiva, Se para uma missa basta um padre, para um padre não bastará uma missa? Site PontoSJ (que se recomenda…). 10 de janeiro de 2020.

Disponível aqui

Se para uma missa basta um padre, para um padre não bastará uma missa?

A minha intenção é pegar em alguns olhares e experiências de Igreja e dar largas a uma certa reflexão crítica, partindo de uma realidade que é inequivocamente complexa e com alguns contornos desoladores. Partindo da figura do padre,  acabarei por redundar em alguma projeção de eventual visão futura (ou futurista…) da vida eclesial. Faço notar que nesta fase da vida, sou espectador/ator de dinamismos paroquiais rurais. Mas admito que muito do que se tece aqui possa ser extrapolável para realidades mais urbanas e para outras culturas.

1 –  Se para uma missa basta um padre, para um padre não bastará uma missa?

Já há muito tempo que reclamo junto dos meus amigos padres que seria melhor celebrarem uma missa por dia, porventura também ao domingo. Entendo que os padres “turbomisseiros”, embora certamente agindo por bem, alimentam e perpetuam uma realidade insustentável.

2- Então e as pessoas ficam sem missa ao domingo?

Se for preciso, sim… Mas será a resposta que cada comunidade der, em cada lugar, aldeia, capela, que vai determinar as possibilidades e, principalmente, o futuro possível dessa vida eclesial que, em muitos casos, convenhamos, aparenta e poderá mesmo ser definhante e deprimente, principalmente no que diz respeito ao não rejuvenescimento. Mas avanço desde já atenuantes num sentido muito prático, com algum caráter prospetivo:

a) celebrações de palavra presididas por leigos, se significarem solidez, preparação, envolvimento, renovação, fidelidade à Igreja, unidade com o pároco, etc. (pode não haver recursos humanos para tal).

b) dinamismos de ‘boleias’ bem organizados para que os fieis (incluindo, obviamente, os mais carenciados e com problemas de mobilidade) possam deslocar-se às celebrações em centros da paróquia (então em menor número mas certamente mais participadas). Esta atividade de fazer com que quem queira, possa ir, é, em si própria, vida cristã.

c) celebrações com a presença do padre noutros dias da semana que não ao domingo, em alguns locais mais distantes do centro paroquial.

d) sinergias em maior escala (arciprestados, etc), que otimizem ainda mais todos estes processos

3- Isto não seria uma desvalorização do sacramento da Eucaristia?

Na versão otimista seria o contrário, sob o lema “menos e de mais qualidade”. Seria, antes de mais, o possível e realista. Mas, porventura, mais pré-preparado, mais solidário, mais confortável, menos “a correr”, em suma, mais qualificado…

4- Então e o padre – se celebrar menos missas – o que tem para fazer?

Aquilo que este tempo de Igreja e cultura lhe pedem: que seja um dinamizador pastoral, um garante da unidade com o Bispo e a Igreja no seu todo, mas não mais o executor de tudo e por quem tudo passa. Em particular, nas celebrações e em muito mais, alguém que, rezando menos missas (e porventura reduzindo igualmente outras rotinas de “serviço religioso” questionáveis) tem mais tempo e disponibilidade para:

a) ter ele próprio – padre – “qualidade de vida”, precisamente para poder descansar, rezar, formar-se, refletir com a comunidade sobre o presente e o futuro, ter a sua vida comunitária cristã, estar com as pessoas sem agenda de pressa, etc.

b) revitalizar a ligação da prática religiosa à vida e ao Evangelho, dando mais relevância a outras atividades não necessariamente sacramentais como a lectio divina com partilha de vida, meditação e outras práticas de silêncio, o acompanhamento espiritual, outras atividades de abertura à cultura e à sociedade, etc.

c) apoiar as comunidades nos desafios – agora mais auto-responsabilizantes e auto-protagonizantes por parte dos leigos – que uma vida cristã menos padrocêntrica pode implicar.  

5- E com isto não vamos ter ainda menos gente nas Igrejas? E muitas pessoas não vão ficar tristes?

Teria de se ensaiar para ver mas, se sim, se as pessoas se afastarem mais, será uma purga razoável, diminuindo porventura o grau de consumismo religioso, fenómeno que, em si próprio, é já pouco cristão e sinal de insustentabilidade. A eventual tristeza de algumas pessoas poderá perceber-se mas não pode ser matéria suficiente para não discernir e não agir. Poderão ser criadas alternativas mas a realidade impõe-se e isso tem muita importância. Ignorá-lo é esconder a cabeça na areia e o “medo de magoar” não justifica deixar andar…

6- E muitas igrejas e capelas não ficarão desertas e sem atividade?

Poderá ser que sim e isso deve assumir-se, redesenhando-se o espaço sem nunca optar pela tentação do fechar e guardar. Convém, ao contrário, abrir e partilhar. Algumas sugestões avulso sendo que o padre, mais uma vez, nunca poderá ser o ator omniactuante mas apenas um proponente e depois um ajudador daquilo que a comunidade, nos limites das suas possibilidades e motivações, desejar:

a) criar um subespaço nas capelas mais confortável (aquecido no inverno!) e acolhedor, para dinamismos de pequenas comunidades cristãs (voltar um tanto às origens) que confrontam a sua vida em partilha e se interajudam no viver a fé, em confronto com a Palavra.

b) dispor bancos, cadeiras, altar, etc., de formas inovadoras (porventura mais circulares e onde as pessoas se veem e se horizontalizam à volta de uma fé essencial). Poderá tratar-se de uma certa redecoração intencional de interiores, não necessariamente dispendiosa. Este reinvenção espacial, aliás, poderia ser implementada independentemente dos espaços religiosos estarem mais vazios.

c) mantendo a autonomia de um espaço mais reservado e de silêncio (com o sacrário, nomeadamente) recriar outros espaços no mesmo espaço, que possam abrir a Igreja a outros serviços à comunidade, de índole artístico, cultural, social e inter-religioso. De alguma forma, recriar a coreografia do espaço sagrado a um formato mais flexível, coerente com a não rigidez que este tempo, como todos os tempos, pede aos cristãos.

7- E os outros sacramentos e manifestações religiosas?

Também elas terão que ter os seus ajustes realistas e paulatinamente, haver algum filtro sobre tudo aquilo que se costuma fazer, dando mais importância ao que é essencial e relevando e subtraindo a presença do padre ao que não é crucial. A título de exemplo, em termos pessoais,  prefiro um padre que priorize funerais, mesmo à custa de centralizações e sinergias de batizados e casamentos. Prefiro um padre que se vá ausentando de algumas procissões e outras não essencialidades cristãs e tenha mais tempo para ouvir os membros da comunidade e/ou para visitar a casa de cada um… A gestão de tensões entre a continuidade e a rutura, será o discernimento maior do sacerdote…

Sei bem da ousadia e do quase simplismo que acarreta o exercício de colocar numa folha A4 um conjunto de itens que dizem respeito a uma realidade complexíssima e que traz consigo desafios gigantes. Mas reconheço, ao mesmo tempo, uma evidência clara de que as coisas não poderão ficar como estão, com todos e cada um de nós a sermos espectadores (discutíveis alimentadores?) de um dinamismo (ou falta dele) insustentável.  O traço mais marcante das ideias acima tem por base uma convicção forte de que a religiosidade mais massificada tem um perigo enorme de se banalizar. Sem resignificação criativa, fazendo-se porque sempre se fez, o perigo de afastar a religião cristã de uma vida verdadeiramente afetada pelos critérios do Evangelho é muito real. A prática religiosa, incluindo os sacramentos, parecem em inúmeras situações nada ter a ver com a vida das pessoas. A “crise das igrejas vazias” é, neste sentido, uma enorme oportunidade de requalificação da religião. Pode, a partir daqui, operar-se um certo renascimento, capaz de oferecer uma resposta coerente e integrada de uma espiritualidade que, alimentando-se também de rituais, os encara, prepara e vive como graça que se fecunda em vida-vivida num tempo que, à luz da Fé, será sempre um “tempo favorável” (2 Cor 6, 2). O padre? É um cristão, livre e feliz, com um serviço particular, centrado em animar e caminhar com outros tantos caminhantes, que queiram caminhar neste Caminho…

JP in Sem categoria 14 Janeiro, 2020

dias virão em que não ficará pedra sobre pedra

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Lc 21, 5-11

«Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra»

Estas palavras de Jesus podem parecer fatídicas ou dramáticas. São palavras essencialmente de prudência e de coerência com um Deus que ama e não manipula, que dá liberdade à criação, que é Pai, mas não controlador. No Antigo Testamento, é dito que todos os reinos serão reduzidos a nada. Às vezes, a nossa própria vida ou os edifícios que circundam os nossos afectos parecem desmoronar, não ficando pedra sobre pedra. O mais importante, porém, é fixarmo-nos nas próprias palavras de Jesus: “mas não será logo o fim”. Dito de outra forma, qual anúncio da ressureição, a destruição e a morte não serão a última palavra.

JP in Espiritualidade Frases Sem categoria 16 Novembro, 2019

150 anos da Tabela Periódica: um marco na história e na nossa vida

O estímulo intelectual que a Tabela Periódica induziu e provoca e as aplicações tecnológicas que esta arrumação dos elementos químicos permite e permitirá merecem ser festejados.

J. C. Paiva, 150 anos da Tabela Periódica: um marco na história e na nossa vida. Site PontoSJ. 1 de novembro de 2019. Disponível em

https://.pt/opiniao/150-anos-da-tabela-perodica-um-marco-na-historia-e-na-nossa-vida/

A ONU proclamou 2019 como o Ano Internacional da Tabela Periódica dos Elementos Químicos. Esta organização reconhece a forma como a ciência química se tem vindo a manifestar relevante para a vida na Terra, nomeadamente por via das aplicações práticas em áreas como a saúde humana, a produção de novos materiais, a sustentabilidade, etc. Convergirão iniciativas celebrativas de organizações como  a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), a IUPAC (União Internacional de Química Pura e Aplicada), as sociedades científicas, incluindo a Sociedade Portuguesa de Química, universidades, escolas secundárias, e outras instituições públicas e privadas que quererão comemorar a importância da Tabela Periódica e as suas variadíssimas aplicações.

As tentativas de sistematização dos elementos químicos (mesmo antes de se ter a própria ideia de elemento químico) são tão antigas quanto a própria ciência. O nome Mendeleev, porém, é central nesta história. Nos finais do século XIX, Dmitri Mendeleev começa a esboçar uma forma revolucionária de classificar e “arrumar” os elementos. Este russo, o mais novo de mais de uma dúzia de irmãos, intuíra que se poderia numa mesma estrutura organizativa dispor os elementos de acordo com o seu peso atómico e, também, de acordo com as semelhanças das propriedades atómicas das respetivas substâncias. Uma ideia congénere (a famosa lei das oitavas, de analogia musical) havia sido tentada pelo químico britânico Newlands, mas, em bom rigor, não foi muito levada a sério (nestas coisas da ciência, como em tudo na vida, não basta o génio: há que estar na hora certa e no local certo…). Mendeleev juntou elementos em grupos de sete, dispondo-os em linhas, notando que, com certa periodicidade, as propriedades se repetiam. Por isto mesmo esta genial organização foi batizada de Tabela Periódica. As linhas horizontais, a que se chamam períodos, e as colunas, a que se chama grupos.  Sabemos hoje, melhor do que na altura de Mendeleev, que as linhas horizontais têm os elementos ordenados segundo o seu número atómico (isto é , o número de protões, que, em bom rigor, define um elemento químico). No primeiro período, por exemplo, temos o hidrogénio com número atómico um e o hélio, com número atómico dois. As colunas da Tabela Periódica, por ser turno, definem elementos cujas substâncias têm propriedades semelhantes. Cobre, prata e ouro, por exemplo, são metais do grupo 11.

A genialidade de Mendeleev foi ter deixado ‘buracos’ na sua tabela com vista a poder incluir  elementos que não se conheciam ainda mas que tinham um lugar reservado para ulteriores descobertas. Impressionante, também, para não dizer belo, foi a forma como os novos conhecimentos químicos se ajustaram a recompreender sucessivamente a estrutura da Tabela. A mecânica quântica trouxe a possibilidade de estabelecer o conceito de orbital, como uma zona do espaço onde há eletrões.  Às orbitais mais externas dos átomos chamamos orbitais de valência e, como numa sinfonia, os elementos do mesmo grupo apresentam todos o mesmo número de eletrões de valência.

A Tabela Periódica contempla cerca de 120 elementos distintos: destes, 92 são naturais e os restantes são sintetizados artificialmente, sendo que a maioria destes, pela sua instabilidade, apresentam tempos de vida ínfimos. O corpo humano, grosso modo, tem 63% de hidrogénio (por isso somos tão explosivos…), 26% de oxigénio, a maioria do qual formando água com o hidrogénio (por isto metemos tanta água…) e 9% de carbono (por isto somos orgânicos…). O resto são pequenas quantidades de material: enxofre nos cabelos, cálcio nos ossos e dentes, cobalto na vitamina B12, ferro na hemoglobina, potássio na rede neuronal (em quantidade variável…), zinco para oxidar o álcool (que às vezes entra de mais no nosso corpo…), etc. Se houvesse dúvidas, eis que, definitivamente, nós somos química! Todos estes elementos têm o seu lugar na Tabela Periódica…

Para muitos cientistas e agentes culturais, admito que para os químicos, suspeitamente, mais ainda…, a Tabela Periódica constitui um ex libris da ciência. É o cartão de visita da química e do conhecimento da matéria e é notável o que esta higiene classificativa trouxe ao mundo, de conhecimento e progresso. Mais ainda, o que esta organização promete ainda…

A Tabela Periódica encerra algumas provocações metafísicas, de gradientes variados. Especulemos sobre duas dessas extrapolações, em polos opostos: 1) a Tabela Periódica é a última palavra sobre o que somos, material e literalmente. Somos átomos de cerca de uma centena de espécies e, connosco, todo o universo é apenas e só matéria. Este radical-naturalismo, de pendor materialista e positivista, não deixando espaço a ‘outras realidades’ é uma possibilidade e representa uma crença muito comum nos nossos dias; 2) a Tabela Periódica, como outros construtos da ciência sobre a natureza, sublinha de tal maneira a harmonia e a ordem no mundo material que, de forma inequívoca, é a prova científica da existência de um criador. É verdade que num plano existencial e até poético podemos vislumbrar o dedo da criação na beleza e na harmonia da natureza plasmadas na construção científica em objetos como a Tabela Periódica. Mas a ciência e os seus modelos são sempre dinâmicos e as metodologias da ciência não se aplicam a perguntas da ordem do ‘porquê’ mas sim do ‘como’. A fé num criador carece de risco e não é provada pela via da ciência.

Por ocasião deste centenário celebremos a ciência e os seus progressos. O estímulo intelectual que a Tabela Periódica induziu e provoca e as aplicações tecnológicas que esta arrumação dos elementos químicos permite e permitirá merecem ser festejados. Sabemos que nem todas as aplicações da ciência beneficiam o homem e por isso a ética se impõe em qualquer reflexão desta natureza. A ciência trilha, juntamente com outros olhares, um tatear da beleza e do potencial da humanidade. Com fé, podem entrever-se véus mais ou menos discretos de um Criador amoroso.

JP in Ciência Química Sem categoria Textos 6 Novembro, 2019