os Seus parentes diziam: “está fora de Si”

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 3, 20-35

os Seus parentes diziam: “está fora de Si”

Podemos apoiar-nos na ideia de que Jesus foi acusado de “estar fora de si”, para estarmos mais imunes a eventuais críticas que nos façam, quando mergulhamos em certa “loucura amorosa”, que, tantas vezes vai contra a corrente. Estas críticas vêm, não raras vezes, como aconteceu com Jesus, da própria família. Jesus, porém, não vacila e segue o Seu caminho, impelido por um bem maior do que ser alguém muito certinho. O estilo cristão não é, definitivamente, o do bem comportadinho… É importante não entender esta passagem como um convite a colocarmos em segundo plano o amor aos nossos Pais ou irmãos de sangue. Não se trata disso e seria um mau testemunho cristão, amar o mundo sem amar os nossos mais próximos. Mas, nalguns casos, temos mesmo que romper com alguns laços ou ouvir algumas palavras mais duras, para podermos, como Jesus, realizar a aventura de, como Ele, estar “fora de nós”…

JP in Sem categoria 6 Junho, 2021

Nova Evangelização: permanecer!

Paiva, J. C. (2021). Nova Evangelização: permanecer! Site Ponto SJ, 28-05-2021.

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A expressão “Nova Evangelização” é, bem o sabemos, uma redundância em si mesma. O Evangelho é Boa Nova e, como tal, seria próprio de quem se importa e tenta viver segundo os critérios de tais inspirações, fazer novas todas as coisas. A redundância é uma figura de estilo bem coerente para este caso: trata-se de sublinhar o essencial do essencial (abrir-se à dádiva do insistente novo), secundarizando alguns apêndices, mais ou menos disciplinares, moralistas, exterioristas, formais, rígidos, fechados, velhos…

Escolho o verbo permanecer para harmonizar uma certa visão de nova evangelização, que fará por gerir um difícil e dinâmico equilíbrio tensional: guardar o que certo passado e tradição nos oferecem, abrindo tal legado à novidade do que o tempo de hoje nos oferece e do que o futuro de novo nos trará, na convicção profunda de que estes, como todos os tempos da história da fé, são “tempos favoráveis” (2 Cor 6: 2). Não há lugar, portanto, por mandato bíblico, para pessimismos no olhar, como se o mundo concorresse em sentido oposto ao da esperança. É lá, na realidade do palco da vida, que se radica o sentido. Permanecer em Deus é permanecer na vida real e permanecer no mundo, no sabor encontrado da crença, é permanecer em Deus.

1- Permanecer em Cristo

Permanecer significa dar-se conta da importância da paciência, da fidelidade e de certa passividade que assume o compromisso de estar, esperando a espera da esperança, acreditando no amor. Este permanecer é algo contracorrente face a certo imediatismo contemporâneo onde, precisamente, pelo contrário, se saltita à distância de um clique ou de uma sensação. A imagem de Cristo como videira, em Jo 15, como fonte de seiva e garantia de vida e de unidade, é bastante inspiradora. Permanecer como ramo de videira é teimar nos critérios de Cristo, porque tal vale a pena, porque a vida assim vivida confirma o jugo leve e suave prometido. Porque permanecer é também dar um sentido outro às feridas e às fraturas da existência, vislumbrando a luz que teima em perpassar cada pequena ou grande contrariedade. Para alguns, permanecer na fé ganha tónus com permanecer em Igreja, um gesto continuado que, como tudo na vida, tem também o seu custo. Para quem escreve estas linhas, esta permanência eclesial, muitas vezes suada, é fonte de grande alegria e descentramento, sublinhando-se um caminho e uma salvação da ordem do “nós”. Uma procura de unidade na diversidade que tem as suas identidades e os seus frutos. Um dos aspetos que mais resiste aos ventos do Concílio Vaticano II é certo clericalismo que manifesta os seus resquícios. A iniciativa laical vai dando os seus sinais, mas não está consumada. Da parte de muitos leigos, porventura distantes da circularidade e da horizontalidade que nos fazem povo em caminho, há ainda resistências que se manifestam, por exemplo, na quase ingénua ideia de que o selo de Igreja se confunde com a presença e com a atividade dos clérigos. Sem escamotear a importância e singularidade do dinamismo dos ordenados na Igreja, ontem, hoje e amanhã, há ainda um salto de qualidade laical por emancipar…

2- Permanecer no mundo e no tempo

A lucidez crítica de alguma tendência superficial dos nossos tempos não pode ser entendida como qualquer combate contra o mundo, mais ou menos dualista, como se o mundo precisasse essencialmente de luta. O nosso primado é um outro, o da aceitação ativa e o da procura da justiça fraterna. Inspira-nos Jesus de Nazaré que sempre recusou ruturas com o mundo, preferindo revelar e revelar-Se nas más companhias mundanas, a partir da realidade como ela é. O Espírito Santo, enquanto gerúndio de Deus que em tudo sopra, ganha, no seu entendimento para a vida, em quasi confundir-se com o tempo e com o espaço que correm. Permanecer no Espírito Santo, portanto, é permanecer no mundo. As teses defensivas e identitárias da Igreja esmorecem no próprio Evangelho, que nada tem a ver com trincheiras, antes rasgando-se numa misericórdia em saída, como Francisco não se cansa de apontar. Não haverá nova evangelização sem atenção e permanência nos sinais dos tempos. De aí para o alto se caminhará porque não há caminho, antes prisão, no movimento contrário, bandeirando o cristianismo como mera ideologia.

3- Permanecer na pergunta

Este caminho da realidade para um ideal (e não o seu inverso), é radicalmente pedagógico e um filão fundamental da nova evangelização. As correntes pedagógicas atuais, embaladas pelo iluminismo, pela racionalidade das próprias ciências, incluindo as sociais, e por valores como a democracia e a pluralidade (na minha ótica, sopros com forte raiz judaico-cristã, agora no lastro de uma sociedade positivamente laica) são de ter em conta. As aprendizagens, seja do que for, são colocações baseadas na pergunta. Será o aprendente, mediante informação e propostas, que realizará o seu caminho, processando, acolhendo, ancorando e resignificando o que lhe é proposto, não imposto (ao estilo de Jesus, diria eu). O cristão (sim, missionário e evangelizador por inerência) terá neste tempo uma permanência baseada na pergunta, fazendo e porventura dizendo o que os outros fazem e dizem, mas com um tónus diferente. Principalmente pelos seus gestos e pelo seu ser, mais até do que pelo que diz, gerará a pergunta no outro. Só assim se poderá propor. Se houvesse eles e nós, em matéria de conversão (mas não há…), ambos, nós e eles que somos só nós, seríamos pergunta. Deus teima em ser a última pergunta diante de cada resposta provisória. E Jesus, Ele mesmo, transitou em formato pergunta. A bem dizer, morreu por amor e estava já a permanecer ressuscitando, como uma pergunta. A Igreja que somos, se quiser ser nova evangelização, terá de permanecer como pergunta aprendente diante da novidade que é a própria graça da vida!

JP in Sem categoria 2 Junho, 2021

vacinações…

Inscrevi-me recentemente para vacinação covid. É um privilégio imenso. Valorizei essa sorte: ser europeu, estar num sistema de ‘fila’ em que ninguém é mais que ninguém, surfar na alavanca da ciência, começar a espreitar maior mobilidade e abraços mais físicos. É curioso o convite a especializar o que é, ao mesmo tempo, tão ordinário e comum mas tão extraordinário e significativo.

JP in Sem categoria 14 Maio, 2021

As novidades do dia não estão… no telemóvel

Paiva, J. C. (2021). As novidades do dia não estão… no telemóvel Site Ponto SJ, 02-05-2021.

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O transístor foi uma invenção muito relevante. Curto-circuitando etapas, a pequenez progressiva de todo o arsenal eletrónico permitiu-nos chegar a estes tempos em que, no nosso bolso, podem estar a internet e milhões de dados e informações (i)relevantes, a previsão do tempo e tradutores, emails, mensagens escritas e de voz, o telefone, o controlo de dispositivos em casa, o jornal e até orações. As redes sociais, com os seus prós e contras, tecem-se igualmente no telemóvel. Está ali, portanto, também, algo das nossas relações.

Entender a tecnologia em geral e o telemóvel, em particular, como uma ameaça e um subtrator civilizacional, é nostálgico e pouco fecundo. A procura do equilíbrio parece, antes, residir no ‘tanto quanto’. O fio da navalha coloca-se sempre na pergunta ética que leve a um fazer humanizante. Como químico, gosto de resumir esta tensão ao ajuste da dose. Que dose, neste caso, de telemóvel, pode tornar o aparelho e a minha relação com ele verdadeiramente tónica… e não tóxica, para mim e para os outros?

Algumas dicas quase-práticas para ‘ajustar a dose’

1) de manhã… não começar pelo aparelho…
O início da manhã é sempre uma importante rampa de lançamento do dia. Começar torto é uma porta abertíssima para caminhar torto… e acabar torto. Todos os rituais religiosos valorizam a oração da manhã. Se a vida fosse uma guerra, a oração da manhã era o apontar da artilharia. Sem ela, as munições vão cair erraticamente e podem até causar danos. Quantas vezes reconhecemos que, orientando mal matinalmente, disparamos em todas as direções… Um dos distrativos de orientação chama-se telemóvel. Começar a manhã com as notícias de última hora, com os pop-ups do email ou do WhatsApp, com os espetáculos do istragram ou até com a previsão do tempo, é movediço. Há uma novidade de manhã, que entendo como uma graça, mas que merece o seu trabalho e cuidado: acordar sem vontade de fechar logo os olhos. E uma oração, um naco de silêncio, um agradecimento, comer pequeno almoço ponderado, calmo e sem ruído, são a grande novidade do dia, que brota de dentro e à minha volta. As novidades do dia não estão no telemóvel!

2) às refeições, está desligado
Há uma regra simples e que é consensual para quem reflita minimamente sobre relações humanas, incluindo as connosco mesmos: não ligar o telemóvel durante as refeições. Desligar, colocar em silêncio, tê-lo distante… Sobra espaço para a conversa, com os outros comensais ou para comigo mesmo, para a atitude ponderada e reconhecedora da bondade dos alimentos, para o sabor. Os dedos a teclar e navegar na tela digital favorecem a voracidade do comer, subtraem-nos liberdade…

3) para o quarto é que não
Para crianças e adultos convém também defender-nos do telemóvel no quarto, local de descanso por excelência. Há formas de permitir que apenas chamadas urgentes (um familiar doente, por exemplo) deem sinal, abrindo espaço ao descanso que se procura no quarto e, sejamos humildes, telemóvel e descanso não combinam entre si…

4) proibido se alguém está a querer falar contigo
Todos nós nos espantamos – e lamentamos – um cenário muito frequente em grupos juvenis (e até infantis) em que conjuntos de pessoas estão fisicamente juntos, cada um teclando para o seu lado. Mas alguns de nós, mesmos se adultos críticos destes quadros, já experimentamos estar a teclar no telemóvel com pessoas ao nosso alcance, que desejariam falar connosco. ‘Só um minutinho’, poderemos dizer, ‘tenho uma chamada urgente’. Mas é esta urgência (mal colocada) que nos desumaniza.

5) não deixar de dar feedback
A partir do momento que temos telemóvel (resistindo a uma opção tão hippy quanto tentadora de o não ter.…) temos a obrigação de não defraudar quem nos procura. Assim sendo, SMS sem resposta, emails sem retorno e telefonemas sem chamada ou sinal de volta, são desaconselhados, no que concerne à consideração humana. A dispersão comunicacional em que vivemos pode ter este perigo: banalizar as convocatórias, não significando o toque à porta digital de quem nos procura. Diria mesmo que pode haver um toque ‘sagrado’ na solicitação, também por via eletrónica. Se é sagrado, dê-se-lhe valor e sequência… Pode haver casos de burnout, de não dar conta do recado. Talvez possa ter sentido, nessas situações, prevenir os potencias contactos de que se deixa de ter telemóvel e se atende apenas um número fixo, que só se responde a email ou outra qualquer plataforma clara e coerente que explicite o grau de abertura possível para comunicar.

6) pela positiva: que nos ajude a organizar a vida e promover contactos
Se não se pretende alimentar a visão e vivência pessimistas das inovações tecnológicas, há que sublinhar os aspetos positivos e otimizáveis associados ao telemóvel. Para além de um ‘almanaque sempre à mão’, com oportunidades de conhecimento, organização e contactos, há que potenciar esses caminhos. Numa outra intervenção escrita, gostaria de aprofundar as vantagens da organização digital na vida pessoal e comunitária, mas, para já, a título de exemplo, fica a sugestão de ampliar a eficácia de pontes com pessoas mais sozinhas, tendo uma lista de tarefas dos contactos a promover. Entre outras, esta é uma das vias solidárias – e por isso eticamente cristãs – do aparelho…

7) sentido autocrítico para uma pedagogia capaz de promover a autocontenção
Algumas das regras acima estão radicalmente entrelaçadas nos processos pedagógicos. Pais e professores sabem bem da urgência de educar para o bom uso do telemóvel. Além de tentar começar desde cedo com estas regras (tão anuídas e aceites por todos quanto possível) há que ir fomentando pela conversa, pelo comentário cultural, por várias expressões artísticas contemporâneas (cinema, artes plásticas, literatura, etc.) um sentido genuinamente autocrítico acerca do uso do telemóvel. Os alcances mais ancorados no dinamismo pedagógico serão conseguidos quando forem auto-conquistados. A meta do educador, nunca esquecendo, seria aquela de que o próprio educando interiorizasse e se apropriasse da regra, mesmo que a tivesse recebido em idade mais recuada, como uma rotina… Depois surge a criatividade e o trabalho de engendrar alternativas ao tecnológico, onde a relação com a natureza, a arte, o jogo lúdico analógico e o desporto assumem particular relevo de saída.

Está visto o diagnóstico: reconhecemos mau uso, abuso ou overdose de telemóvel. Falta ‘mãos à obra’ e, incontornavelmente, teremos de convocar alguma autodisciplina, capaz de potenciar este instrumento e esta possibilidade tecnológica, tanto quanto nos conduz para o fim amoroso da nossa existência, que não é desligar-nos, mas ligar-nos!…

PS: Recebo algumas críticas, particularmente dos que me são mais próximos e não sem razão, que me apontam um resvalar, algumas vezes, para um estilo meio professoral, excessivamente pedagógico e até com algum malabarismo estratégico de ‘querer convencer’. Reconheço essa tentação, em parte potenciada pelos ossos do ofício de ser professor. E, nesta reflexão, tenho o dever de confessar o crime. Estas palavras têm o seu quê de endireitar veredas, talvez até de ‘puxar as orelhas’ e contribuir para reorientar um menino que eu cá sei… eu mesmo!

JP in Sem categoria 4 Maio, 2021

Digo ou não digo?

Paiva, J. C. (2021). Digo ou não digo? Site Ponto SJ, 15-04-2021.

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Um dos grandes dilemas relacionais que nos atravessa a vida toda prende-se com a questão “digo ou não digo?”. O que penso, como me sinto, como reajo, como leio determinada perspetiva, palavra ou acontecimento, como pressinto dado cenário, etc. Quem escreve estas palavras tem um passado e um traço personológico de um certo anti-conflitualismo militante que, apesar de tudo, tem vindo a transformar-se. Reconheço hoje, de forma muito clara, que sem algum grau de conflito dificilmente há progresso relacional. Há formas, ambientes, oportunidades e até técnicas que nos ajudam a conflituar civilizadamente (não levantar a voz, por exemplo) mas, a vida, ela mesma, sublinha-nos que o confronto crítico é da dor de parto inevitável das relações sadias. É assim, aliás, também, na vida interior e espiritual, onde a palavra luta não pode ser excluída e onde, por sugestão bíblica, o morno é desaconselhado.

Há um caminho para o discernimento em causa: relações com ou sem futuro

Apresento uma boa notícia (à qual se seguirá, como é costume, uma menos boa notícia…): há uma tese, diria mesmo, uma resposta objetiva, um critério, para fazer face à pergunta que dá título a esta reflexão. E é esta: sim, digo, se a relação tiver futuro.

A má notícia é que a tensão discernente se mantém: desloca-se para uma outra pergunta: “esta relação tem futuro”? Ficará para outro momento um olhar e um eventual amparo para esta enorme e inquietante questão mas registo desde já que algumas relações até “formalmente” próximas (com amigos, pais, filhos, cônjuges, membros da mesma comunidade, etc.) podem não ter muito futuro. Muitas vezes, esse sombrio futuro é dramático e espreitam até becos sem saída. O “sem futuro” das relações nota-se pela toxicidade e desgaste das interações e pode e deve ser encarado com realismo, coragem e liberdade. Muitas vezes, há que romper e vir embora, sacudindo o pó das sandálias. Sem futuro, todos concordamos, não vale a pena.

Algumas dicas quase-práticas para as relações com futuro:

1) quando o fígado se quer descarregar
Há muitos dizeres que são meras descargas figadais, autocentradas e, normalmente, não construtivas. Um discernimento pessoal atento, quando nos preparamos para dizer algo a alguém, porventura de maior teor crítico ou menos abonatório, poderá balizar-se por esta auto-pergunta: “é para descarregar o fígado ou para trabalhar esta relação com futuro?”. Em suma, quem se prepara para dizer, pode colocar a sua intenção numa banho-maria que só avança se passar pelo crivo da construtividade relacional.

2) O tempo, o modo e o espaço
Não pode ser qualquer, o tempo (para uns à noite, para outros à tarde, para outros daqui a uns dias…), o modo e até o espaço onde um diálogo mais combativo se pode travar. Muitas vezes, estas circunstâncias mais externas minam a qualidade da conversa e, por isso mesmo, estes aspetos deves ser mutuamente combinados, preparados e anuídos.

3) O caso da mensagem escrita
Tenho uma simpatia particular, nos cenários de maior tensão e de maior acumulação de “não ditos”, pela mensagem escrita. As grandes vantagens deste expediente prendem-se com a não interrupção recíproca, com a possibilidade de ponderação e de forma de expressão, com o enfoque e com o evitamento da deriva (a bem dizer, as virtudes que descrevo correspondem, no seu avesso, aos traços típicos das deteriorações dialogantes). Como há um certo mito de que a mensagem escrita pode significar medo, fuga ou falta de coragem, sugiro que quando se usa este mecanismo escrito desbloqueante, se tenha um encontro presencial, face-a-face, e se entregue a mensagem, que o recetor ou o emissor podem ler, sem interrupções, em voz alta. Seguir-se-á, desde logo ou adiante, o dinâmico feedback e contra feedback que se impõe…

4) Perguntar ao (potencial) recetor… se quer receber
Pode parecer estranho, mas é fundamental perguntar ao outro se quer ouvir o que lhe tenho para dizer, prevenindo, se for o caso, que pode incluir inspirações mais críticas. Mas é crucial esta indagação na cultura da assertividade. Ninguém ouve se não quiser ouvir e nem convém que o recetor se disponibilize apenas por cerimónia ou obediência. Desde que comecei a usar esta prática (“queres ouvir algo que te tenho para dizer sobre este assunto e que pode incluir algum teor crítico a teu respeito?”), tenho tido mais autênticos encontros a partir de dilemas e divergências. Tenho acumulado também, ironicamente, experiências surpreendentes de negação, em relações que eu julgava… com mais futuro. É verdade que no caso da resposta ser negativa, se manterá, até por mandato cristão, um certo não desistir da pessoa. No nosso coração, será libertador guardar sempre uma abertura, um lugar universal que, por assim ser, tem sempre um nicho de oportunidade para todos e para cada um. Mas, participando no risco da liberdade criadora, não podemos forçar um futuro que o outro não queira ou não possa, na circunstância em que se encontra…

Há denúncias incontornáveis mas há também os nossos limites 

Podemos incluir nesta temática um devir ético e também cristão de denúncia. Em alguns casos (de forma evidente naqueles que correspondem à ultrapassagem da lei e à tangência de crime, real ou moral) teremos mesmo de avançar, mesmo que o próprio visado não deseje confronto. Quando são tocados terceiros pelos atos em causa, a pressão para “dizer” torna-se mais evidente. Mesmo assim, porém, a denúncia, como tudo o que fazemos e dizemos, há-de ser suportada pela liberdade e sujeita aos nossos próprios limites. Tenho a consciência de, ontem e hoje, embora não deseje, ter metido no bolso denúncias que deveriam ser feitas, por limitações próprias da mais variada ordem.

Na Igreja que somos – que tem futuro – ainda falta dizer muito… 

Na Igreja que somos, nas nossas relações intra-comunitárias e no modus faciendi da estrutura eclesial, vejo com frequência certa cerimónia no dizer. Atribuo tal circunstância, principalmente, a dois tipos de equívocos: 1) uma certa ideia de “cristão bonzinho” (que não me parece emergir dos Evangelhos) que poupa aprioristicamente os outros, esquecendo que o crescimento pode pressupor alguma dor. É por isto que ‘magoo ou não magoo se disser’ não é a pergunta central do discernimento cristão sobre o dizer ou não dizer. Também nesta linha, são positivamente inspiradoras, embora não necessariamente muito e bem exercidas, as práticas de correção fraterna, tão frequentes nas regras de muitos carismas religiosos; 2) um excessivo e desequilibrado apoio na metáfora da descrição, do ‘não dar escândalo’, em última análise, na preservação da imagem (exterior…). Essa defensividade colide radicalmente com a sugestão evangélica da luz que convém mostrar e não esconder (Mc. 4, 21-22). Em muitos dossiers polémicos, vistos de dentro e de fora da Igreja, há um longo caminhos a percorrer no que diz respeito à assertividade pública e privada, à transparência e à explicitação…

Na perspetiva crente há dois vetores relacionais que possuem intrínseco valor e que, por isso, merecem investimento: a relação connosco mesmos e a relação com Deus. Há que nunca desistir destes dinamismos, interligados pela Presença que nos habita e pelas pontes com os outros humanos. Tudo isto tem um enorme futuro!

JP in Sem categoria 20 Abril, 2021

Blended apostolicus: oportunidades para a Igreja no digital

Paiva, J. C. (2021). Blended apostolicus: oportunidades para a Igreja no digital. Site Ponto SJ, 14-03-2021.

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A situação de pandemia que vivemos forçou-nos a todos a uma maior intensidade de mediação digital. Reuniões síncronas por via de plataformas como o zoom; visualização e partilha de vídeos, textos e animações; maior interação em redes sociais; mais à vontade com recursos digitais.

Na vida da Igreja muitas das habituais interações como conferências e catequeses, reuniões de estruturas e outros encontros não pararam. A eficácia resultante surpreendeu muitas pessoas, mesmo os mais céticos, pelos progressos técnicos pessoais e pela eficiência que os processos digitais possibilitam.

Somos peregrinos. Não está no nosso ADN a simples nostalgia de desejar tão só voltar ao mesmo sítio. Por isto mesmo, há um certo mandato cristão de tirar proveito destas aprendizagens e potenciar as grandes virtudes de algumas interações digitais. Nos tempos mais próximas, espera-se, haverá uma espectável e legítima procura de presencialidade, de toque e de fisicalidade. Mas não tardará um reequilíbrio capaz de conjugar essa mesma congregação pessoal clássica com as novas janelas da tecnologia. Em educação, usa-se o termo blended-learning (abreviatura b-learning) para a utilização conjunta de momentos presenciais com interações digitais, síncronas ou assíncronas, tipicamente a distância. A palavra blended aproxima-se da palavra mistura e diz respeito à indústria do whisky, onde vários líquidos se juntavam. É algo inspirador para muitas das coisas que podemos vir a fazer em Igreja, embalados pela hiperdigitalização destes tempos: um entrelaçado fecundo (blended) entre os momentos plasmados no mesmo espaço e no mesmo tempo e outros à distância… de um clique!

São óbvias algumas vantagens das reuniões virtuais, quer na perspetiva geográfica (daqui para qualquer lugar do mundo, e vice-versa…) quer por aspetos muito práticos como: poder estar em casa, com filhos pequenos, doentes ou dormindo, poupar combustível, ganhar algum tempo, aliviar o trânsito, bem como outros contributos indiretos para a saúde da Casa Comum. Em síntese, um potencial incremento da assiduidade. Digo isto quer para aqueles encontros de preparações de eventos, secretariado e planeamento, quer para outros eventos de natureza mais “apostólica” (convivo bem com o termo – apostólico – mas sublinho que o sentido apostólico é da ordem do ser e essa ontologia é pouco dada a estratégias e a militâncias muito dirigidas…).

Poderíamos chamar a certa vida futura da nossa comunidade, b-Igreja (b de blended). De fora, compreende-se pela própria essencialidade do toque, os sacramentos. A eucaristia, em particular, não me pareceu ganhar muito com a mediação digital. Independentemente da emissão para terceiros, de per si, a missa (física) em COVID apresenta notárias falhas cénicas (mascaradas) e fragiliza intrinsecamente a liturgia. Em particular, saliento a antítese de evitar o contacto quando se celebra a comunhão. Compreende-se o mal menor das missas transmitidas em pandemia, já praticado pela via televisiva em pré-pandemia. Intensificou-se por aí uma marcada regressão, na forma como alguns se referem à eucaristia usando essa terrível expressão: “assistir” à missa…

Por outro lado, passível de potencialidade digital, claro está, estão realidades como o acompanhamento espiritual, as reuniões comunitárias de fé e de vida, conferências temáticas, debates, catequeses, secretariado de equipas de serviço, etc. Será lamentável se não se aproveitar este embalo. O formato blended (não falamos de digitalização exclusiva) será equilibrado e permitirá respeitar os vários ritmos. Não será razoável, em pós-pandemia, fazer reuniões de cariz nacional, principalmente de secretariado, no formato virtual (pelo menos algumas vezes, senão na maioria dos casos…)? Não será interessante evitar viagens cansativas e arriscadas, principalmente no Inverno, fazendo-se a parte ou o todo de um grupo, presente não fisicamente? Pode colocar-se a questão, aqui e ali, de haver ritmos e sensibilidades diferente na tensão encontro presencial/encontro digital. Para estes dilemas sugiro o caminho salomónico, respeitador de todas as equações e estilos: quem entender como melhor estar fisicamente, assim estará. Quem entender como melhor (ou só puder assim), estará digitalmente. Estes formatos mistos presencial/digital parecem-me de enorme futuro. Hoje em dia, tecnicamente, qualquer telemóvel de gama média colocado no meio de uma mesa, capta o som do conjunto e fornece a participação de quem estiver a distância. Para eventos com mais pessoas, não será desproporcionado adquirir um microfone/emissor de maior alcance, dispositivos cada vez mais acessíveis e que otimizam a receção e emissão de som para grupos de muita gente.

Costuma ser notado, no contexto destes argumentos, o problema da infoexclusão, particularmente dos mais idosos ou desprotegidos económico-culturalmente. Sem prejuízo de ser precisa ainda alguma solidariedade cristã digital, impressionou nestes tempos a quantidade de pessoas que se superaram e apareceram on line. Mais ainda (e digo-o com experiência própria), foram lançadas e vividas oportunidades a gente do interior do país, nos mais variados lugares europeus e até do outro lado do oceano.

Pode caber aqui, em véspera de ano inaciano, o exemplo de Inácio, forçado a parar em confinamento por fraturas da vida. O seu momento Pamplona (equivalente ao nosso momento COVID…) levou-o a reformular (-se) e a reformular a vida. O essencial desta resignificação que vivemos não é a digitalização mas existirá, também no bom uso da tecnologia, uma alternativa de alavancamento.

Sim… há perigo de sofá, de quentinho, de ir pelo mais fácil. Por outro lado, via tanta gente cansada, a ir a todas… Via uma sociedade poluída, ruidosa, azafamada (mesmo com a agenda das ‘coisas de Deus’), excessivamente urbanizada… Caberá a cada um e a cada grupo ir vendo e avaliando sistemicamente tudo isto, surfando nas aprendizagens COVID. Aferir o grau blended para a bebida do grupo… ou até tomar sempre whisky quase puro! Com ânimo e alegria há que ir caminhando, com um pé na fisicalidade e outro pé no digital…

JP in Sem categoria 16 Março, 2021

contemplar-discernir-propor

Austen Ivereigh, um dos mais notáveis biógrafos do Papa Francisco, diz que este prefere, em vez da tríade ver-julgar-agir, uma outra, sob o chapéu da misericórdia, que poderia ser contemplar-discernir-propor. Percebo este andamento, menos moralista, mais gradual, mais pedagógico, mais confiante na consciência de cada um. Por vício de síntese, tomo para mim como seria interessante ver, julgar e agir, contemplando, discernindo e propondo…

JP in Sem categoria 10 Março, 2021

ecologia e autocrítica…

Interpreto com compreensão e até com agrado a irreverência juvenil contemporânea que marca presença nas manifestações pela preservação da casa comum e pelo combate às causas dos desarranjos climáticos. Há um lastro de responsabilidade social e sentido autocrítico, porém, que convém ter em conta. Estar a manifestar-me nestes cenários e mudar de telemóvel assim que sai um novo modelo, aceitar acriticamente a boleia dos papás, de carro, para a escola ou viajar intercontinentalmente de forma desenfreada, é lutar ao estilo de frei Tomás: olha para o que eu grito, não para o que se faz…

JP in Sem categoria 2 Fevereiro, 2021

Empanturrados de religião

Paiva, J. C. (2021). Empanturrados de religião. Site Ponto SJ, 24-1-2021.

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Tropecei algures, não sei onde, com uma expressão feliz de crítica religiosa: “os empanturrados”. Olhando à minha volta e até na minha história pessoal, dentro da Igreja, reconheço com nitidez estas insinuações.

A dose, a intensidade e a colocação da “coisa religiosa” merece constante resignificação na vida de cada crente. Sem uma lucidez crítica apurada, facilmente caímos em dois lugares extremos que representam, ambos, um não encontro: ou nos desiludimos, ou nos empanturramos.

Convoco duas analogias que me foram trazidas pelo jesuíta Javier Melloni, não sei se em segunda, se em primeira mão, para explicitar a minha colocação: a analogia do copo e do vinho e a analogia do caminho e do veículo.

O copo e o vinho. Segundo esta analogia, o essencial espiritual representa o vinho. Note-se que o vinho é bom, perfumado, saboroso, valioso e dom (fruto do trabalho, também…). As religiões seriam o copo, por onde se pode tomar o vinho, com valor adicional de eficácia. Os copos, porém, valem pelo potencial de conter e partilhar o vinho, não por si. São diversos nas formas, feitios, cores, mas apresentam uma função em si própria louvável, que é a de serem disponbilizadores de vinho. Há uma certeza humilde que o copo deveria ter (perdoe-se-me a personificação): o copo não é nem a fonte nem o vinho!

O caminho e o veículo. Nesta analogia, o caminho, desde logo comum e não exclusivo de ninguém, é o trilho onde se pode progredir. Este caminho é feito de estações de encontro e constitui, em si mesmo, também teleologicamente, o Encontro. O veículo, mais uma vez com potencias de utilidade e favorecimento, ajuda a caminhar. As religiões, bem entendido, são veículo e não são caminho, não lhes cabendo, portanto, qualquer espaço nem tribal nem endogâmico. Se convém cuidar do veículo? Sim, fazer as revisões, estimar e não estragar desnecessariamente. Mudar o óleo, evitar a corrosão. Mas que se cuide do veículo para ele andar e, já agora, de forma inclusiva, para ser o veículo do nós e não o meu veículo. Todos conhecemos os endeusadores de automóveis, às vezes de coleção: estão polidos, expostos e protegidos… mas progridem pouco, valendo mais para serem vistos do que para caminhar. Há também carros que optaram por se preservar das agressões externas, quiseram ser defendidos e resguardados. Ficaram parados, não fazem caminho e mais parecem sucata…

Ambos os cenários analógicos, como se vê, apresentam forte potencial ecuménico e inter-religioso mas são, simultaneamente, as estradas da própria identidade cristã, cuja marca tem em si própria a porosidade radical de quem não tem fronteiras. Quem coloca o tónus no copo escolhe lutar pela sua posse, enquanto o vinho é diálogo. Quem se polariza no veículo foca-se em defender(-se), enquanto o caminho é rasgada oferta.

Na linguagem analógica acima podemos perceber bem os dois extremos típicos já aludidos: os que com alguma ingenuidade optam por aceder ao vinho sem copo ou que caminham sem veículo (concedendo-se que algum vinho beberão e alguns passos andarão); e os que, em reduto fundamentalista, que não é nem fundamental nem radical, endeusam os copos e esquecem o vinho, puxam o lustro ao veículo, mas mantem-no estático.

O cerne do equívoco prende-se com a clarificação do que é central e do que é periférico. Com alguma clareza, observo na lide religiosa quem toma como central as formas, as normas, as roupagens e as exterioridades. Essa (pesudo)segurança fecha, enrijece e, não raras vezes, é bafienta a até apodrece. Se, pelo contrário, o centro for a fé, a crença vivida num Deus que só ama e cria e a misericórdia com que, também por nós, se verte no mundo, resulta em abertura, respiro, leveza… vinho e caminho.

O contrário do indesejável moralismo não é a amoralidade. Os que trabalham para se centrar e recentrar atenta e comunitariamente no núcleo amoroso da fé não desprezam as roupas com que nos precisamos de vestir, mas estão conscientes da secundariedade das formas, dos ritos e dos normativos. Estes só servem se colorirem o fundamento primeiro do amor a Deus e ao próximo. Jesus de Nazaré parece ser, a este nível, inspirador…

Perguntei-me, por simetria, se haveria “empanturrados de Deus”. A minha conclusão é que Deus não deixa que d’Ele nos empanturremos. Há um lado na relação com a transcendência que é da ordem do “quanto mais melhor”. Mas esse salto místico, paradoxalmente, deixa-nos sempre não possuidores e, pelo contrário, expostos com entusiasmo à novidade e à alegria interior, com as suas consequências relacionais soltas e promotoras. Mais ainda, essa overdose com o Totalmente Outro, dentro de nós e em toda a parte, alimenta-se da não palavra, num silêncio que não ocupa espaço de sobrelotação. A nossa religiosidade, portanto, ou serve essa mística aberta vivida… ou empanturra…

JP in Sem categoria 26 Janeiro, 2021

adiar o abraço

No tempo de pandemia e nos desejos de estar e abraçar fisicamente tantos outros que há muito não tocamos, talvez se possa dar um pequeno mergulho místico e dizer: “até breve pois se um instante é a eternidade contida e a eternidade são instantes inteiros e integrados, daqui até ao Verão é um eterno instante…

JP in Sem categoria 14 Janeiro, 2021