Bíblia e historicidade

Moisés, por exemplo, não é considerado absolutamente simbólico e mítico (como Eva, Caim ou Noé) embora a sua historicidade seja polémica, localizando-se, contudo, nos séculos XIII-XIV a.C. Há uma tensão bíblica ‘historicidade-literatura-simbolismo’, de alguma forma equivalente à tensão ‘fisicalidade-simbolismo’, em toda a chamada “história da Salvação”. A Bíblia não é, com toda a certeza, algo “caído do céu aos trambolhões”. Também não é, para os crentes, apenas mais um livro de histórias. São livros (um plural importante…) que contêm a semente de um dinamismo de revelação, que carece sempre da leitura da fé, para o encontro com a fé…

JP in Espiritualidade Frases 8 Abril, 2019

Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Jo 8, 1-11

«Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra»

A história da mulher adúltera é das mais expressivas da vida de 
Jesus. Revela facetas da sabedoria cristã (desmontagem da cilada dos fariseus) e de grande misericórdia (“também eu não te condeno”). A analogia popular de que quando apontamos aos outros um dedo, são três dedos que se apontam a nós, pode ser convocada: todo o exercício critico pode ser feito com consciência autocrítica. Não julgarmos os outros sem estarmos atentos às nossas próprias fragilidades é um bom caminho para viver uma lucidez crítica misericordiosa.

JP in Espiritualidade Frases 6 Abril, 2019

humildade impossível

Há uma frase frequente que é a pura ironia da humildade. Esta frase revela, de alguma forma, que a humildade é intrinsecamente indizível… (apenas vivível). A expressão proibida, paradoxal e eternamente sem sentido é esta (alguém dizer, na primeira pessoa, de si mesmo): “sou muito humilde!”…

JP in Educação Espiritualidade Frases 4 Abril, 2019

(des)motivações e fascínio docente

Estamos num tempo difícil para os professores. Espreitam elementos de grande desmotivação. Mas há – tem que haver – uma chama mais funda que resgata o sentido da profissão e resignifica o quotidiano da vida na escola. O mais importante é e será sempre a paixão de ensinar. Haja o que houver nas escolas e nas reformas educativas, o fascínio será sempre a mola do professor. O fascínio do professor é o eixo que faz mover a escola e, assim, anima o mundo!

JP in Educação Frases 2 Abril, 2019

espaço sideral rarefeito

É impressionate o facto de, no espaço sideral interestelar, haver cerca de uma partícula por centímetro cúbico. Com este espaço tão rarefeito, estima-se que a colisão entre partículas ocorra de 10 em 10 milhões de anos. Química fugaz, imensidão de quase vazio… Torna-nos pequenos, a nós e à nossa escala…

JP in Ciência Frases Química 28 Março, 2019

respiração, meditação e árvores

A meditação, de índole religiosa ou não, tem uma relação incontornável com o ritmo da respiração.  O dinamismo do “ar que entra / ar que sai” pode ser acompanhado de várias metáforas interiores, que ajudam o meditante a voltar à auto-percepção. Em particular, aprecio e uso a imagem da árvore, numa dicotomia de estrutura e fluidez: sou tronco firme com raízes (ar que entra) e circulação dinâmica com vida e morte das folhas (ar que sai)…

JP in Espiritualidade Frases 26 Março, 2019

Tira as sandálias dos pés porque o lugar que pisas é Terra Sagrada

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Ex 3, 1-6. 9- 12

«Tira as sandálias dos pés porque o lugar que pisas é Terra Sagrada»

Deus apareceu a Moisés que, deparando com uma sarça ardente sem se consumir, avançou para ver. O Senhor, porém, disse-lhe para tirar as sandálias. Vejamos a nossa vida pessoal como um “Moisés” que caminha e se deslumbra com as maravilhas de Deus. A terra que pisamos, porém, é sagrada e sensível. Tirarmos as sandálias é, para nós, hoje, apurar a nossa sensibilidade, sentir o chão, tocar nos outros e, sem solas isoladoras, sentir que é mesmo sagrado o caminho que percorremos. Uma boa oportunidade para revermos, a partir do judaísmo, o nosso conceito de sagrado: o sagrado não está distante, é a terra que pisamos, o espaço que habitamos, tomado como dom…

JP in Espiritualidade Textos 24 Março, 2019

Levar

LEVAR

Trago a

alma

leve

de tesouros

grandes

de amor!

Confiei

que morrer

era este viver

que carrega

suavemente

uma pesada cruz!

Abriram-me

uma porta

tão bela

quanto estreita,

à qual

nem sequer bati…!

…in Paiva, J. C. (2000), Este gesto de Ser (poesia), Edições Sagesse, Coimbra.

acessível aqui

 

JP in Espiritualidade Poemas 22 Março, 2019

espera da Primavera

Gosto muito da espera da Primavera. Mas gosto, talvez ainda mais, de gostar de gostar da espera da Primavera. Gostar de gostar é desejar o desejo. Será isto voar?

JP in Frases 20 Março, 2019

Dogmas, bóias e cientificismo

Adquiri um vício orante pessoal, que me recoloca no cerne cristão: sempre que invoco a omnipotência divina acrescento, para não esquecer, “omnipotente… no amor”.

 

J. C. Paiva, Dogmas, bóias e cientificismo. Site PontoSJ. 25 de maio de 2018. Disponível em

https://pontosj.pt/opiniao/dogmas-boias-e-cientificismo/

 

 

Dogmas, bóias e cientificismo

A palavra dogma, como todas as palavras, a bem dizer, carrega consigo uma carga forte e múltiplas abordagens. As palavras, neste tema com em tantos outros, são sempre tentativas, aproximações… São importantes (as palavras), mas é bom estarmos conscientes da precariedade do artesanato léxico.

Na sua raiz etimológica grega, que não é necessariamente a mais relevante, a palavra dogma remete-nos para uma crença, uma opinião ou mesmo uma aparência. Em religião, e no caso católico, em particular, o dogma assume um lugar mais intenso e afirmativo, mesmo assim não isento de ambiguidades. São entendidos como dogmas as “verdades de fé” estruturais, intrinsecamente imutáveis mas que foram sendo desbravadas e explicitadas ao longo do tempo na história e na tradição da Igreja. Existe, portanto, na sua génese, um traço de dinamismo retroativo, desde logo, na própria edificação da dogmática, que pode ser igualmente emprestado ao presente e ao futuro. É certo que os dogmas não são opiniões teológicas pessoais e são para ser assumidos (principalmente vividos…) pelos crentes católicos, mas a dogmática só na aparência se identifica com rigidez. Rahner vai talvez ainda mais longe quanto a este radical dinamismo dizendo que uma definição dogmática é não só um resultado ou uma conclusão que oferece precisão e clareza mas é principalmente um ponto de partida que tenta ‘dizer’ o inefável.

A analogia com que mais simpatizo para os dogmas é equipará-los a bóias. Neste cenário, a vida seria uma navegação em mar aberto e, por vezes, é preciso bóias para a nossa “salvação”. Há várias bóias a que podemos recorrer. Acreditamos na sua existência, mas é admissível que nos socorramos em conformidade com o nosso estilo e com as nossas necessidades. A dimensão comunitária, já que em Igreja não se aponta à salvação individual mas à salvação de todos (ou melhor ainda, à salvação de Deus), também pode estar presente nesta analogia já que será possível, desejável e agregador, que muitos de nós nos agarremos à mesma bóia.

Arriscaria escrever que há umas bóias mais relevantes que outras, pelo menos em certas fases da vida pessoal, comunitária e da própria história da humanidade e da Igreja. E, convém dizer, há uma bóia primeira, talvez a maior, talvez a mais importante de toda a história da salvação. Essa bóia pode traduzir-se no dogma dos dogmas: “Deus é Amor”. Todos os outros pilares dogmáticos daqui bebem.

Esta bóia de salvação é uma assunção que alguns de nós entendem assumir sem discussão, como bóia mas quase como “amarra”. É uma prisão escolhida e, paradoxalmente, uma porta de liberdade. Se tenho fé, é porque me foi oferecida a possibilidade de viver apoiado num pressuposto assumido de que Deus existe e é um Deus de amor, de relação. Não quero, deliberadamente, navegar sem esta bóia e este dogma, nas entrelinhas de todos os outros, confere-me liberdade. É a vida e não propriamente a moral, que me convida a esta crença.

Os católicos declaram este dogma basilar no credo que celebram em comunidade, quando dizem “creio em Deus Pai todo poderoso…”. Este Pai (o que é relatado no abraço do filho pródigo) é o próprio amor. Por motivos pedagógicos e para evitar equívocos, confesso que preferia um ajuste semântico-litúrgico no credo, dizendo, antes, “creio em Deus Pai todo amoroso…”.

Uma das linhas de corte colocada em cima da mesa quando se fala de ciência e religião é a questão do dogma. O argumentário de certo ateísmo de contexto científico é o de que a ciência, ao contrário da religião, não se baseia em dogmas mas antes num dinamismo que a tudo se abre e que tudo discute. No seu olhar metodológico, estamos de acordo que a ciência se move num questionamento intrínseco e até num dinamismo de tentativa de falsificação constante das teorias vigentes. Mas no seu essencial, convém dizer, a ciência carece também dos seus “dogmas” de partida. O químico e filósofo Michael Polanyi convida-nos a tomar nota da necessidade daquilo a que chama uma “rede fiduciária” de partida no construto científico, chamando à atenção de que tem que existir uma confiança intrínseca de partida, em certo sentido inquestionável, quando se faz ciência. Numa visão mais histórico-crítico-filosófica podem apontar-se três pilares (dogmas?) para a ciência, o ontológico, o epistemológico e o ético, que se podem reproduzir nesta tríplice afirmação: “a realidade existe, é possível conhecê-la e é bom saber como funciona”.

Num plano diferente estão certas linhas (dogmáticas…) cientificistas. O cientificismo carateriza-se por uma inspiração intelectual de sobrevalorização da ciência e do seu papel social e civilizacional. Não se trata de entender que a ciência é relevante, a vários níveis, para a evolução da humanidade (nisso estamos todos de acordo). É ir um pouco mais além e entender, fomentar e militar a ideia de que a ciência é a melhor via para progredir – a expressão “a melhor” é o busílis. Duas importantes referências contemporâneas para este cientificismo são, no plano filosófico, Daniel Dennett e, no plano prático (por via da Biologia e do evolucionismo), Richard Dawkins.

O mais irónico na “pureza antidogmática” de certa postura cientificista é que há uma aparente tolerância com a diversidade de ideias, a surpresa da natureza e a abertura ao mundo tal qual ele é. Neste sentido, a ciência cientificista, embora em plano de superioridade, dialoga com a cultura e com outros saberes, acomodando a racionalidade artística e outras áreas do conhecimento. Mas tal generosidade tem pelo menos um limite óbvio, que é em si próprio um dogma e que ignora liminarmente a racionalidade teológica: não há espaço para o diálogo com a religião, tida apenas como um inimigo a (com)bater.

Do meu lado, sem complexos, assumo os meus dogmas, que são os dogmas trazidos no barco da tradição da Igreja, vividos, ditos e reditos no dinamismo das palavras, preservando a sua essência basilar. Por algum motivo, foco-me no dogma principal. Adquiri um vício orante pessoal, que me recoloca no cerne cristão: sempre que invoco a omnipotência divina acrescento, para não esquecer, “Deus omnipotente… no amor”. Posto isto, com os outros, com a realidade, com o mundo e com a ciência, todos os diálogos e possibilidades são viáveis e desejáveis. Agostinho sintetizou-o bem em pouquíssimas palavras: “ama e faz o que quiseres”.

JP in Ciência Espiritualidade Textos 18 Março, 2019