ouvarei o Senhor toda a minha vida

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Slm 145

louvarei o Senhor toda a minha vida

Louvar é bem dizer e pode ser um bom respiro. Fixemo-nos na expressão final do verso do salmo, isto é: “toda a minha vida”. A sociedade (não só hoje mas desde sempre), como a própria contingência do homem, é muito virada para o provisório. A nossa felicidade, por outro lado, tem muito a ver com uma certa esperança e confiança no futuro. Sem deixar escapar o presente (antes potenciando o “já”), vale a pena viver, se a nossa vida for uma vida com futuro! Louvar o Senhor, hoje, é bom. Melhor ainda, expressão de fidelidade libertadora, é louvar o Senhor, hoje, querendo também louvá-Lo “toda a minha vida”. Ser feliz, não só pelas (tantas) coisas boas que tenho hoje, materiais e espirituais, mas, principalmente, porque a fé me dá a graça de saber que serei feliz amanhã, aconteça o que acontecer…

JP in Espiritualidade Frases 4 Setembro, 2021

ajuda e autonomia

Há uma tensão infinda entre ajuda e promoção de autonomia nos dinamismos pedagógicos. Se a missão do professor é, por um lado, ajudar o aluno, não é menos verdade que, quanto mais autónomo for o indivíduo, mais eficaz será a educação. Mas ninguém nasce autónomo e há que ir escolhendo a medida certa, no sentido de conseguir a maior autonomia possível. A ajuda preciosa, afinal, de pais, educadores e professores é a ajuda para a autonomia!

JP in Educação Frases 2 Setembro, 2021

Eu e a dona Aurora: ambos cegos tateantes

Paiva, J. C. (2021). Eu e a dona Aurora: ambos cegos tateantes. Site Ponto SJ, 6-06-2021.

Disponível aqui

Noutro dia vinha da feira, a pé, numa caminhada de uma horita. Coisas da vida aldeã. Uma rampa enorme apresentava ao longe uma senhora vergada, puxando um carro de compras com uma mão e arrastando-se com uma bengala na outra mão. Impressionava a sua resiliência. Ofereci-me para levar o carrinho até sua casa, imaginando que morava no topo daquela colina. Hesitou primeiro, deixou depois. Explicou-me onde morava, lá deixei as compras e segui viagem. A partir daqui é imaginação.

Quando a dona Aurora chegou a casa, aliviada, mas mesmo assim cansada, tomou um copo de água, suspirou, sentou-se no sofá e rezou: “agradeço-te, Senhor, por me teres enviado um anjo que me trouxe as compras e me aligeirou o jugo”.

As intercomunicações celestiais entenderam por bem informar o próprio anjo, eu mesmo, daquela prece. Comecei a processar aquela informação, não tanto por ter sido eu o anjo. Porque às vezes também sou mafarrico e porque os anjos é que lucram, mais do que os que são alvos das suas setas. A minha matutatação era intelectual, teológica, cosmovisionária. Permito-me partilhá-la – tal matutação – não tanto pelo seu processo, não tanto pela tese em si, mas pela sua explicitação final. É no ponto de chegada, que dá título a esta reflexão, que pode morar alguma centelha.

A dona Aurora imagina o Céu onde Deus monitoriza o mundo. As cortes do paraíso estão ao serviço do Senhor, que manda aqui e ali fazer alívios e intervenções, curas e auxílios. Fosse Aurora extrapolada culturalmente para adiante e imaginaria uma central robótica cosmocontroladora, com câmaras de filmar expiando todos os passos e cabelos do mundo. Uma panóplia de circuitos integrados que ativariam vários anjos, para as ações que comprovariam os sinais divinos.

Ora eu tenho outra cosmovisão, outra teologia e outro entendimento da ação de Deus no mundo. Impressiona-me o mal e o bem, a ferida e a bênção, a dor e beleza, a morte e a vida. Mas há um traço de liberdade, do horizonte do risco de Deus, que é mistério, mas que existe. É o resultado prático desta vida que vale a pena e que resulta da fé de Deus em nós e no mundo, amorosamente criado para todos. Deus arrisca. Arrisca fazer de homens anjos, arrisca a liberdade de todos e de cada um. Arrisca até o pulsar da natureza e do cosmos. Por isso a Terra treme e os vulcões bufam. Arrisca a dor da fricção das vontades e dos corpos. E há acidentes… Arrisca convocar-nos. Cria e está mas, ao mesmo tempo (que paradoxo!), deixa ar para o respiro da liberdade. Mais ainda, convoca homens e mulheres para construir o Seu sonho e não se impõe e talvez nem sequer peça, antes se propõe. Por isso também há doenças mas há quem salve (e se salve…) curando-as… É também por isso, porque Deus só pode o que o amor pode e o amor tece-se da íntima liberdade, que há faltas de comparências de anjos em muitos teatros de incompletude. Em alguns desses cenários de injustiça, falto lá eu… e com culpa.

Deste meu constructo – sim, talvez fruto da razão, do fluxo greco-latino, do iluminismo, da ciência, da cultura deste tempo – sai também alguma ‘cerimónia’ na petição a Deus e na forma como reconheço os Seus sinais na minha vida e no circo onde se movem as criaturas humanas. Não peço que me apareçam anjos nem que as doenças me larguem. Não peço chuva na seca nem sequer que o covid19 se vá embora. Posso desejar alívios, mas impõe-se-me esta abertura ao que vem, de mãos vazias. Impõe-se-me pedir para receber o tudo em nada e o nada em tudo. Impõe-se-me pedir que veja mais longe, que respire mais puro e que alcance mais alto, tanto na saúde como na doença, tanto na riqueza como na pobreza, tanto na honra como na desonra. Peço por mim e por todos, peço certa salvação e a nossa salvação. Peço para saber estar no silêncio e na soledade de hoje e de amanhã. Peço paz, adesão, fidelidade, coragem e alegria. Peço para saber pedir nada. Portanto peço.

Poderei mudar os meus horizontes mas, provavelmente, não vou mudar radicalmente a minha forma de ver o mundo, a minha forma de rezar e pedir, a minha forma de me entender e abraçar o que existe. Eu e a dona Aurora vemos o mundo de forma diferente, por isso também Deus e as coisas de Deus sobre o mundo. Somo flores diferentes de um mesmo jardim, ângulos diferentes a olhar um mesmo destino. Somos mundo, somos comunidade, somos porventura Igreja (com I grande e aberto), eu e ela. Nenhum melhor que o outro, ambos cegos tateantes de um Deus que se não consegue dizer. Somos anjos que se cruzaram num instante de paraíso.

JP in Sem categoria 30 Agosto, 2021

negligenciam os mandamentos de Deus e apegam-se às tradições dos homens

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mc 7, 1-8

negligenciam os mandamentos de Deus e apegam-se às tradições dos homens

As palavras de Jesus para os fariseus apresentam um enorme potencial autorreflexivo para a Igreja. O apego a certa tradição, como se tal tradição fosse o próprio Deus é, ainda hoje, aqui e ali, um problema agudo no seio da Igreja. Não se nega o valor da tradição mas evidencia-se, pelas próprias palavras de Jesus, o perigo de, em nome dessa tradição, se negligenciarem as propostas cristãs e, especificamente, o mandamento do amor ao próximo. Hoje como ontem há fariseus por muito lado. Há também, porventura, um “fariseu” dentro de cada um de nós…

JP in Espiritualidade Frases 28 Agosto, 2021

ainda não

“Ainda não sei, ainda não consigo, ainda não sinto… “. Vamos morrer nestes termos, cheios de “ainda nãos”…  Portanto, a graça a pedir é saber estar nesta bela e oferecida barca do “ainda não”…

JP in Espiritualidade Frases 26 Agosto, 2021

rio que corre para o mar

Das analogias da natureza que mais encaixa na metáfora humana que nos entranha, destaco a de que somos um rio que corre para o mar. Neste sentido, resistir seria evitar o ser. Deixar-se ir, pelo contrário, seria encontrar-se com a essência do mar…

JP in Frases 24 Agosto, 2021

Para onde iremos, Senhor, se só Tu tens palavras de vida eterna?

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Jo 6, 60-69

As palavras de Pedro vêm ao encontro de uma experiência interior pela qual as pessoas de fé vão passando: a sensação de podermos estar enganados, de estarmos a perder oportunidades, o sentimento de estarmos equivocados na fé, de termos, tão só, inventado Deus. Estas palavras são as mesmas que podemos dizer quando estamos ao lado de Jesus: “Para onde iremos, Senhor, se só Tu tens palavras de vida eterna?”. Disse Pedro estas palavras e podemos nós hoje dizê-las, porque experimentamos, na nossa própria vida, a liberdade de seguir Jesus. Há uma ambiguidade na fé vivida que se tensiona entre a dúvida, a convicção e uma certa inevitabilidade…

Este texto é adaptado em parte ou na totalidade de palavras anteriores já publicadas.

DOMINGO XXI DO TEMPO COMUM

L 1 Js 24,1-2a.15-17.18b; Sl 33 (34),2-3.16-17.18-19.20-21.22-23
L 2 Ef 5, 21-32
Ev Jo 6, 60-69

conflito

O medo do conflito, em muitas circunstâncias, pode ser pior do que o próprio conflito. O equilíbrio a procurar é o de saber conflituar.

JP in Frases 20 Agosto, 2021

Oportunidades no digital: subtilezas do ‘desinstalar-se’

Paiva, J. C. (2021). Oportunidades no digital: subtilezas do ‘desinstalar-se’. Site Ponto SJ, 13-08-2021.

Disponível aqui

Esta reflexão nasceu de elaborações que tenho vindo a fazer a propósito da reação a uma proposta de abertura a formatos mistos presencial/digital, em dinamismo de comunidades cristãs. Embalado pela simpatia dos modelos mistos (presencial/digital) provocados, oferecidos, ensaiados e vividos em tempo de pandemia, parece-me um bom caminho tirar proveito e recomeçar criativamente, superando o mero “voltar ao que era antes”.

Diante da mudança e da novidade, em geral, há inércia e reatividade. Tudo compreensível, nos planos antropológico, psicológico e social. Mas pergunto-me se o Evangelho, nos detalhes e nas traves-mestras, não traz uma insinuação contrária, mais desafiante: precisamente a impressão digital da boa-Nova.

A pandemia trouxe novos formatos de possibilidade para algumas vivências comunitárias, mas há quem tenha receio da novidade que a novidade pode ter trazido. Nas entrelinhas da argumentação reativa, quase sempre, vejo sinais de medo: o medo de que venha a ‘ser uma balda’, o medo de perder o já conquistado, o medo de não ser como era dantes, o medo de perder o controlo, o medo da novidade…

O desinstalar-se…

Algumas reações a estas oportunidades são curiosas e até projetivas…

De todos os argumentos mais reativos aos formatos mistos presencial/digital na vida das comunidades cristãs, o que mais cócegas me faz é o que invoca a necessidade de nos desinstalarmos. Pode estar cheio de aparências de bem…

Aprecio a expressão ‘desinstalar-se’, neste sentido de evitar o sofá da vida humana… Entendo até (não sei se é consensual…) que é no plano da existencialidade mais profunda que o perigo da instalação se alimenta. Compreendo a instalação de Marta no fazedismo de muita coisa, mas é talvez no modelo de sua irmã Maria, que o convite à novidade da escuta aberta é mais radical. O que será desinstalar-se?

a) Subtilezas de certa teologia da cruz e do mérito
A ideia de que a experiência em sacrifício vale mais do que a menos dolorosa tem as suas razões, mas muitas sombras. Está claro que dar a vida (fundamento último da liberdade cristã) pode demandar esforço e dor (no limite dá morte de cruz…), mas o horizonte nunca é a cruz, é o amor que vai até à cruz. Por isto mesmo, no dia-a-dia, o que importa é o amor posto em cada gesto, não o que marca o ‘sacrifiquímetro’, esse aparelho imaginário que mede o grau de sacrifício com que cada atitude se desenvolve, que alguns de nós, crentes, teimamos em trazer no bolso… A par de certa desfocagem da cruz, vem quase sempre o mérito, a ideia de que colecionando sacrifícios, teremos as medalhas para ir para o Céu. Só que o Céu, mais ainda aquele Céu que se vive no tempo e no espaço oferecidos, é uma dádiva, apriorística e garantida. O mérito que a dádiva dá (redundância deliberada) pede à nossa liberdade o “sacrifício” da aceitação de tamanho amor.

E o que tem isto a ver com encontros mistos presencial/digitais? É que alguns argumentos de reatividade, mais ou menos explícitos, estão nas entrelinhas de um insinuante sacrificialismo: vens cá presencialmente e não digitalmente; vestes-te e não estás de pijama; vais meter a criança nos teus pais e não a deitas já na sua cama; vives na cidade e estás perto do ruído urbano, não no campo; abandonas o conforto do lar e desinstalas-te na saída de casa; sofres como eu sofri a logística para vires presencialmente a todos os encontros; não estás a ler um livro até cinco minutos antes da reunião e perdes uma hora no trânsito e poluis, etc. A metáfora “se dói muito, então vale mais” tem muito de criticável em sede de terreno cristão…

b) A presencialidade física como condição necessária pode ser fuga
Há depois uma outra nuance, com que cada um se poderá ver ao espelho, sem máscaras. Face a um dilema de estar presencialmente ou virtualmente numa reunião, a ida presencial é necessariamente mais virtuosa? Pode ser… mas pode não ser. Pode ser sinal de fuga, de quem não tem vida interior, de inquietude, de compulsão convivial. Não confundir nada disto, claro está, com a legítima saudade e positiva prática de encontro corpo-a-corpo, de abraço e de movimento, de toque e de cheiro. Quem escreve estas linhas, que fique claro, aprecia, pratica e promove tais encontros plenos de fisicalidade… mas admite que eles sejam intercalados com o encontro virtual, para benefício flexível de todos e para bem do planeta…

c) A tradição, mais uma vez a tradição…
Também de forma mais ou menos velada, aparecem argumentos reativos de certa tradição: sempre foi assim… E sempre nos sacrificamos pela fidelidade presencial. No passado assim foi, no presente e no futuro assim será… Compreendo o valor da tradição, mas sem leitura crítica não vamos lá. Uma boa analogia envolvendo a tradição misturada com o sacrificialismo seria a ideia de uma Mãe que, diante da sua filha grávida, prestes a dar à luz, lhe dissesse: no meu tempo não havia epidural, portanto trata de fazer nascer a criança com dor. Com mais ironia (embora eu mesmo veja valor e pratique o retorno à terra) pergunto-me se não seria de ponderar ter um porco na varanda em vez de ir comprar febras, para isto voltar ao que era…

Entre gente madura, é o discernimento na pluralidade que vale

Está claro que há necessidade do elemento presencial. Com alguma organização e agendamento, alguma da fisicalidade inexpurgável dos dinamismos comunitários (não só, mas também os cristãos) pode ser concentrada em determinadas circunstâncias. No entre-tanto, estou mesmo convencido disto, seria ótimo criar condições para os encontros mistos (presencial/digital) precisamente “à vontade do freguês”, diga-se sem receios. Claro que “à vontade do freguês”, numa versão madura, é o sagrado discernimento pessoal da melhor conveniência sistémica. E aqui, no melhor dos sentidos, cada um sabe de si, não havendo lugar a juízos mais ou menos morais sobre as respetivas justificações. A propósito de justificações, aliás, tenho uma versão muito própria e radical sobre justificações de ausências a encontros de comunidades cristãs: prescindo delas! Sou um admirador e julgo que praticante da assiduidade, mas confrontado com justificações de ausência, minhas ou dos outros, fico meio sem jeito e convoco aquela máxima que ainda sinto na pele: quanto mais te justificas mais te “enterras”, porque muitos ‘não posso’ são ‘não quero’. O caminho, claro está, é assumir as preferências.

Ainda a propósito de fidelidades a dinamismos grupais há uma nota curiosa que, embora pessoal, me parece merecer alguma consensualidade: a assiduidade e a pontualidade subiram radicalmente nos encontros virtuais em tempo de pandemia. Se assim é, pode ser auspicioso que assim continue nos formatos mistos de hoje e amanhã…

Uma referência assumidamente prática, mas importante: nos encontros mistos, há que tratar muito bem do aspeto tecnológico, para que quem está presencialmente escute e se faça entender junto de quem está mediado digitalmente. Do ponto de vista do som, há que cuidar de ter um bom telemóvel ou computador, ou, melhor ainda, de dispositivos mediadores de som associados próprio para videoconferência. Sem este cuidado técnico, pode comprometer-se a funcionalidade dos encontros mistos, que são tecnologicamente mais desafiantes que os encontros digitalmente puros (zoom e companhia…).

Deverei fazer uma declaração de interesses, no sentido de assumir uma posição algo extremada na simpatia por algumas interações digitais, em virtude do meu estilo de vida (não urbano) e das possibilidades e aptidões tecnológicas que fui experimentando. Mas, descontando essa suspeição, fica o convite à pluralidade livre e discernida…

Uma referência última, algo sintética em si mesma, ao medo que a “a moda pegue” e que todos optem pelo “mais fácil do digital”. É isso mesmo, um medo… que pode conter uma insinuação moralista, mais ou menos consciente, de certo controlo, receio de novidade e falta de confiança.

Que cada um e cada comunidade encontrem o seu processo, sem tabus e sem moralismos. Que se abram e não fechem portas. Tudo com muita paciência e alegria!

JP in Sem categoria 18 Agosto, 2021

fundamentalistas religiosos

Relembro-o a mim próprio, para tentar compreender melhor e moderar a minha negativa reação: os fundamentalistas religiosos, nas palavras de Melloni, vivem uma defesa, face ao medo de que se dissolva o solo que pisam… O seu problema, afinal, é julgarem possuir como rigidamente sua, uma dádiva fluente…

JP in Frases 16 Agosto, 2021