«grandes maravilhas fez por nós o Senhor»

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se o Salmo 125

«Grandes maravilhas fez por nós o Senhor»

Ter fé, de alguma forma, é apoiar-se vivencialmente na ideia de que o amor é a última palavra e, portanto, Deus fez (e faz) maravilhas. O Salmo 125 coloca-nos num dinamismo que diz respeito à nossa vida: o salmista fala nos homens (nós) que “à ida vão a chorar” mas “à volta vêm a cantar”. Saber que o regresso é de júbilo torna possível e até animada uma partida sombria. Ter futuro, ter esperança no Senhor, ter certeza no cantar, suporta o nosso presente e ampara a nossa dor. Este processo repete-se em pequenos e grandes ciclos da nossa vida e, às tantas, o futuro e o presente confundem-se: chora-se cantando e vive-se a esperança. Andará por estes critérios a fé, a própria bem-aventurança da vida…

JP in Espiritualidade Textos 24 Outubro, 2021

«a Terra está cheia da bondade do Senhor»

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se o Salmo 32

«A Terra está cheia da bondade do Senhor»

Sermos capazes de ver e saborear as coisas boas é um elemento fundamental do nosso crescimento espiritual. Os Santos, em particular, são contemplativos, isto é, tentam ver com os olhos de Deus. Podemos olhar a nossa vida, os outros, a História, as situações e a Terra, salientando no que vemos “a bondade do Senhor”, conforme as palavras do Salmo. Não somos ingénuos e sabemos da existência do mal, dentro e fora de nós. Mas não conseguimos caminhar sem “atestar o depósito” da alegria, com a “bondade do Senhor”. Há uma palavra curiosa, neste contexto, que se pode convocar: a “abundancialidade” (da criação contínua…).

PS: Há uma linguagem própria das escrituras e da religiosidade, que pode precisar de resignificação. A expressão “Senhor”, por exemplo, pode ser encarada e vivida espiritualmente como um caminho de recentramento no que é essencial, num “qualquer coisa Outro” (O Senhor – amoroso), que não eu próprio…

JP in Espiritualidade Textos 16 Outubro, 2021

«vende o que tens e segue-Me»

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se o texto Mc 10, 17-30

«Vende o que tens e segue-Me»

O repto lançado por Jesus ao jovem rico é, também hoje, lançado a cada um de nós. Ao cristão que se encanta e se aproxima de Jesus, querendo segui-Lo, é sempre pedido mais, como convite de liberdade e não como jugo pesado. As riquezas de que fala Jesus não representam essencialmente, embora também, o dinheiro e as coisas. Temos riquezas quando estamos cheios: de objetos, de projetos, de instintos possessivos, de nós mesmos. E alguém cheio de coisas dificilmente passa por uma porta estreita. O sentido espiritual da entrega é ‘o depósito’ do nosso jugo no colo de Deus, deixando-nos leves para o amor. Para este exercício, há que praticar o verbo largar…

JP in Espiritualidade Textos 10 Outubro, 2021

«não separe o homem o que Deus uniu»

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se o texto Mc 10, 2-16

«Não separe o homem o que Deus uniu»

Uma reflexão sobre o casamento e a proposta católica: o apontamento para a indissolubilidade do matrimónio religioso (um conceito de insinuação química, por sinal…) parece-me um tesouro a guardar, um convite a manter e um processo a trabalhar continuamente, também pelo valor antropológico, cristão e sociológico que contém.

Acontece que, como muitas propostas evangélicas, trata-se de algo libertador mas exigente e radical. Muitos casamentos católicos podem não ter sido devidamente entendidos e vivenciados (era bom criar as condições de acesso pleno e popular a uma eventual declaração de nulidade). Ou as possibilidades reais, de cada um, dos dois, do acumular de circunstâncias e fragilidades, podem ter-se tornado insuportáveis. Chegados a esse ponto (não inócuo, para todos), em todo o caso tentando não banalizar, vulgarizar e ‘saltitar’, importa mais, à boa maneira de Cristo, o potencial de crescimento e recomeço do que o martírio culpabilístico, legalista e excluidor. A Igreja, sinal do amor de Cristo no mundo, é convidada a ajudar a ‘fazer as malas’, avaliar criticamente, amparar, acolher e estabelecer bases (elas próprias exigentes e carentes de trabalho interior e relacional) para efetivos recomeços integrativos.

JP in Espiritualidade Textos 2 Outubro, 2021

As razões da minha fé

 As razões da minha 

Às vezes penso que só creio porque não sei não crer.
De facto, para começar esta reflexão sobre “as razões da minha “,
devo assumir as minhas fragilidades e a minha carência. Daqui nasceu
(e nasce) uma procura inacabada.

Ter , acreditar, é apoiar-me num Deus que acolhe e dá sentido maior
à minha vida. Mas que Deus é este? Deus é também o indizível e há
limitações semânticas para o alcançar com palavras. As “razões da
minha ” (aspas deliberadas, porque são mais do que razões),
encontram-se na história e na minha história, no tempo que passa e no
futuro que saboreio por acreditar. Este futuro com sentido dá luz
maior ao meu presente. Viver acreditando, usando linguagem de uma
geração à frente da minha, é curtido à brava.

Acho que consigo mergulhar no passado e no meu passado, vasculhando
algumas das raízes do meu acreditar. Se a  e a vida se jogam no
tabuleiro da cabeça, do coração e das mãos, metáfora para as dimensões
racional, afectiva e de acção, no meu caso, foram as mãos que
“salvaram”. Por volta dos meus dezassete anos entrei em grande crise
existencial, com perguntas complexas sobre mim, sobre o mundo e sobre
as minhas relações com os outros e com o cosmos. Conversei com muitos,
comigo próprio, escrevi e procurei. Não alcancei pensando. Tive luz
particular quando um dia de manhã, meio desesperado na procura, decidi
aproximar-me de alguém excluído, dando-lhe a minha compreensão, o meu
tempo, as minhas mãos. Fixo esta experiência com a aproximação
possível a uma “definição” de Deus: Alguém que se revela no amor, na
relação. Deus é amor. Eu precisei de outros para saborear o sentido de
acreditar. Certo é que comecei a viver como se o amor fosse o filão de
tudo, o antes, o durante e o depois da minha história e da humanidade.
E a minha vida ganhou sabor, intensidade e coerência.

As referências inspiradoras para esta mudança foram-me dadas pela
Igreja, que me “falou” de Alguém que vivera cerca de dois mil anos a
esta parte, nascera numa manjedoura e marcara a história (com as suas
mãos), vivendo e propondo um estilo de vida simples, polarizado num
incondicional amor a um Deus-amor, que se manifesta paradoxalmente
numa vitória da vida sobre o sofrimento e a morte. Jesus Cristo teve
amigos que foram seus discípulos e depois apóstolos de uma Igreja que
tomou raízes no tempo e chegou pelo tempo até mim. Devo dizer que nem
sempre a Igreja me apresentou (ou eu não vi) uma imagem de Deus
positiva, coerente e possível. Mas no essencial fui conseguindo
apoiar-me nos aspectos mais urgentes da mensagem, redescobrindo
novidades e aproximando-me dos estilos e linguagens mais sintonizados
com a minha procura. Sem perder o sentido crítico, fui aderindo e
comprometendo-me com a Igreja de Jesus Cristo, neste tempo e neste
contexto cultural que sou. Acabava por ir sendo, vestido com os meus
limites, um vivente, um discípulo e um apóstolo de Jesus.  O
compromisso libertara-me. Mas há um jogo de risco no acreditar, que se
repete todos os dias. Digo a mim próprio, muitas vezes, que inventei e
invento um Deus que não consigo “agarrar”, vivo como se Ele existisse
e descubro, com as mãos, que o que eu invento, afinal, existe e sempre
lá esteve, pacientemente à espera, de “graça”…

Não se tendo alcançado a  pela razão, não significa isso, de forma
alguma, que a  seja irracional. A edificação do meu acreditar
centrou-se na vida e numa entrega essencialmente afectiva onde a
racionalidade, sempre presente, se deixou colocar ao serviço da causa
maior, apriorística e essencial do amor. Aí posso admitir uma
limitação em relação a outros amigos não crentes que, numa primeira
análise, poderão ter uma maior “liberdade” de pensamento (dou de
barato que, para alguns, estou viciado à partida): por necessidade,
por limitação, por carência, por experiência de sentido, deixei-me
embriagar pela convicção, pelo risco, pela ideia de existir um Deus de
amor que está antes, durante e depois de tudo. Viver assim é bom e eu
rendi-me!

Utilizo a razão e a inteligência para lubrificar as minhas buscas e
relações. Com todos os pensamentos “embrulho” sistemicamente o meu
coração e as minhas mãos no tempo que passa. Este Deus (de amor, como
preciso de insistir) é de gerúndio: vai-se revelando, sem nunca se
poder possuir. Há uma dinâmica de mistério, de incompletude. Deus é
“já” mas sempre “ainda não”. Mas este futuro por descobrir dá um sabor
interessante à minha liberdade.

Dilemas como a teodiceia (a equação de Espinosa e de tantos outros)
são desafios constantes à minha razão. Como entender um Deus
omnipotente e associado a amor, que, podendo poupar os homens, permite
o sofrimento e a morte, aparentemente errática e sem sentido. Talvez
não seja para entender mas para ir entendendo, ou talvez para ir
vivendo. Talvez Deus seja “omni-impotente”, expondo-se frágil e não
impondo-se poderoso. Talvez este dilema encerre como um tesouro o
melhor formato da nossa liberdade. Talvez outras coisas que posso
descobrir…

A Igreja, que sou eu e os outros e não só nem essencialmente uma
instituição, tem um potencial para ser fonte de Deus. Nem sempre o
foi, nem sempre o é. Mas Deus, convém dizê-lo em explicitação
ecuménica, é maior do que a Igreja. Tenho para mim muito claro, que na
suposição imagética da barca de Gil Vicente para entrar no paraíso,
ninguém me perguntará, para escolher o meu lugar na vida eterna, “a
quantas missinhas fui”. O Evangelho, aliás, já estabeleceu “as
perguntas”: tive fome e deste-me de comer, tive sede e deste-me de
beber… (Mt 25, 34-36). Esta pergunta, claro está, é para responder com
a vida do agora e do aqui. Os aperitivos do paraíso jogam-se desde já
e o “prémio” (como o nosso “inferno”) são deste tempo, naturalmente. O
que vem depois é a consequência natural das escolhas e das apostas do
nosso tempo presente…e sobre isso a misericórdia de Deus pode ter
universais e desconcertantes surpresas. Eu vou à missa porque acredito
e experimento que essa celebração da paixão de Jesus alimenta, em mim
e nos outros com quem comungo a , a “loucura” de viver o Evangelho.

O sonho de Deus é uma festa. Uma festa que se vai fazendo mas que está
por universalizar. Sinto (diz-se ser uma graça – dada gratuitamente)
que eu, como cada homem, somos feitos à imagem e semelhança de Deus.
Podemos tomar como nosso o Seu sonho de festa. A nossa missão é
encontrar sentido em ser pedras de uma construção comum, um mundo
melhor. Nunca ninguém fez boa festa sozinho. Por isto Deus não tem
mãos e as minhas, as tuas e as de todos, são as Suas mãos. É esta a
“razão” da minha !

Porto, Março’ 2010

JP in Espiritualidade Textos 14 Agosto, 2020

A Igreja dos pobres que (ainda não) sou

J. C. Paiva, A Igreja dos pobres que (ainda não) sou

Site PontoSJ (que se recomenda…). 27 de maio de 2020.

Disponível na íntegra abaixo:

A Igreja dos pobres sempre me fascinou. O início da Igreja é feito de pouca coisa, qual pobreza. Nas suas inquietudes e escapatórias, sem querer ser historicamente minimalista, são sobretudo os desvios dessa pobreza que descaraterizam a seiva da Igreja. Também nos nossos tempos, os legítimos olhares mais duvidosos sobre a Igreja fitam as suas riquezas. E eu próprio, quando me olho mais criticamente, como cristão, vejo falta de pobreza.

1- O que será a pobreza?

A palavra ‘pobreza’ está quase gasta, entrecruzada erraticamente nas suas dimensões pessoal, espiritual, cultural, social e política. Há várias pobrezas, dentro e fora de nós. A falta das necessidades mais básicas, como aquela de comer, é um rosto de pobreza que não podemos escamotear. Neste mundo, agora mais pequeno e ligado, continua a ser aviltante haver um qualquer habitante do planeta que não tenha o que comer. Enquanto isso acontecer, nenhum de nós pode estar descansado. Comer é necessário mas não suficiente para se ser livre. No seu poema cantado “liberdade”, Sérgio Godinho diz bem: “Só há liberdade a sério quando houver: a paz, o pão, habitação, saúde, educação”. Neste sentido, a promoção concreta das condições de vida de todas as pessoas, nestas diferentes áreas, são o nosso combate à pobreza. Há uma dimensão de pobreza mais profunda, que ultrapassa o pão mas que só é conquistável por quem tenha um mínimo de pão: chamamos-lhe pobreza espiritual. É uma bem-aventurança de abertura em crer para nada querer. Percebe-se bem naquele conto oriental segundo o qual um mendigo pediu a uma pessoa de posses que lhe desse algo. Essa pessoa deu-lhe tudo o que tinha. No dia seguinte, o pobre voltou e retorquiu: “ensina-me a ser como tu. Dá-me a riqueza de que eu preciso, que é a capacidade de dar tudo o que tenho, como fizeste ontem comigo”. Compreendemos bem que haja gente (e as duas gentes dentro de cada um de nós…) que seja rica-pobre e pobre-rica…

2- A pobreza nos evangelhos

Há extensa bibliografia sobre este assunto mas talvez se consiga uma síntese consensual sobre a forma acolhedora, provocante e libertadora como Jesus se dirigia às pessoas. Todas elas carentes, frágeis, desejosas de algo mais. Todas elas, pobres, como nós. Os pobres do Evangelho são, pois, a mulher adúltera, o amigo traidor, o cobrador de impostos, o cego e a sua família, os convivas das bodas de Caná, o coxo e o paralítico, a mulher viúva e a samaritana com sede, a multidão com fome. O desfecho com os famintos pode inspirar-nos na resposta à pobreza, como Igreja: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6, 37).

3- Uma pobreza que esmaga

Face à pobreza e à injustiça, ao que falta de amor no mundo, sinto-me tremendamente esmagado. Esta pressão tem dois sentidos, que apertam ambos o meu coração: a compaixão evidente por aquele que sofre e a minha própria dor pelo pouco que dou. Para estas entaladelas, ajudará a paciência, a perseverança da fé e a consequente ação. Não há outra resposta à chaga que não seja tocar-lhe. A insuficiência da minha doação aos pobres tem, aliás, algo parecido com a epistemologia da ciência e não só: quanto mais descobrimos, mais ignorantes nos encontramos, como se tentássemos alcançar uma linha do horizonte, que sempre se desloca adiante… Com a caridade, palavra desgastada mas que vale como sinónimo de amor, e particularmente amor aos mais pobres, acontece algo de parecido: quanto mais se dá mais se constata o que falta dar… Há pois um equilíbrio dinâmico a empreender, importante mas difícil, entre: a) assumir o que falta como luta face à pobreza, realizando concretamente a partilha (de bens, de tempo, de presença, de nós mesmos…); b) constatar a nossa insuficiência senão mesmo certa mediocridade neste combate; c) resistir sempre a ficar no sofá, excessivamente adaptado à complexidade do problema e às limitações próprias da ação. Há um certo conforto, também ele evangélico, que podemos valorizar a partir do pouco que fazemos; faz-se muito do pequeno: do grão de mostarda, da migalha, da moeda modesta, do cesto do pão…

4- Não perder de vista que a austeridade escolhida é uma burguesia

Aprecio e tento praticar a chamada economia da frugalidade, que nos aponta Serge Latouche. Mas há que registar que nós, deste lado do mundo, com comidinha à mesa e banho quente, podemos melhor fazer este caminho. Não posso pedir a um menino que vive de colheita de plástico em lixeiras da Indonésia que seja frugal, nem a um habitante de uma favela brasileira que não deseje fortemente ter um carro bom. Posso ser mais pessoal nisto: fui conquistando certa austeridade escolhida, mas tenho um salário garantido. Abrandei radicalmente o turismo longínquo, também a pensar no ambiente… mas já conheci muitas cidades em quase todas as latitudes; não tenho no meu horizonte trocar de veículo de transporte, mas já me fartei de andar em dunas com uma mota de boa cilindrada Honda Transalp; evito ir a restaurantes… mas já fui muitas vezes comer fora, etc, etc. Por isto mesmo, não me escandalizo com as pessoas que, tendo rendimento mínimo garantido, tomam o pequeno almoço fora… Claro, para elas é excepcionalmente bom, o que para nós seria criticamente ordinário… A sua pobreza pode não ser nem só nem principalmente de pão… mas é pobreza e pede a nossa entrega e a nossa criatividade. Compreendem-se bem os padres da teologia da libertação que, apesar dos conhecidos exageros de tal movimento, tinham muita razão cristã quando invocavam uma máxima a ter em conta: ao oferecer o pão da eucaristia, tenho que oferecer também pão a quem não o tem para comer.

5- Creio na Igreja, vou à Igreja, estou na Igreja ou sou a Igreja?

Quando rezo o credo, na esperança de não estar em heresia (…), faço uma auto-atualização que me confere mais sentido. Digo que creio em Deus, em Jesus, no Espírito Santo e que… creio em Igreja. Uso deliberadamente este ‘em’ (em vez de ‘na’), para sublinhar que a Igreja é o lugar onde me situo para viver as crenças vitais na trindade. Esta pertença assim dita não me desmobiliza e penso poder até evitar a idolatria institucional acrítica ou o “picar o ponto” num dinamismo desresponsabilizante. Pelo contrário, diria, pelo menos em desejo, quero trazer à minha relação com a Igreja certa ontologia e, por isso, ser Igreja, encoraja-me neste dom de ser um ordinário batizado. E se a Igreja é o lugar onde creio, se vivo em Igreja, esta é a Igreja de todos os que nela caminham e, por isso, é a Igreja dos pobres, que vivem em comunidade e celebram a alegria de se quererem partilhar, partir, comungar, ser pão para os outros… A Igreja será também o lugar onde a caridade aos mais pobres se exerce coletiva e comunitariamente. Se a salvação espiritual não é um caminho solitário, é o povo de Deus que reza “Pai nosso” e não “Pai meu” que dá pleno sentido à Igreja e, portanto, ser Igreja é co-laborar em conjunto no alívio dos mais necessitados. Somos ainda, tipicamente, “fraquinhos” cristãos de hospital de campanha, comparados com a mobilização celebrativa e outros apelos e manifestações…

A constatação de que eu próprio sou um medíocre e tensional praticante da caridade, leva-me ao desejo de uma relação mais humilde (mais verdadeira) e mais obediente (capaz de escutar outras sensibilidades) com esta Igreja que sou. Com efeito, querendo manter a lucidez crítica, não posso deixar de ser moderado e misericordioso no olhar que estendo aquilo que falta à Igreja (…que sou, repito). A este nível da encarnação da pobreza a que somos chamados, somos também todos… pobres. Desejo evitar certo tom de protesto obsessivo pelo caminho que falta e dar eu próprio os passos possíveis, denunciar construtivamente, dar sugestões alavancadoras, fazer provocações que mobilizem…

6- Opção preferencial pelos pobres: uma escatologia

Não haverá outro devir mais livre e pleno, para cada um de nós, do que aquele de ser pobre e de preferir os pobres. No seu sentido mais amplo, ser pobre é ser de mãos vazias. Ser pobre é ser livre e livre para a doação. Há que equilibrar a aspiração à pobreza espiritual mais profunda (que só se consegue, me parece, com recolhimento e oração) com a atenção concreta e quotidiana aos francamente mais próximos.

Há pobres mais distantes, face aos quais algo podemos fazer mas cuja pobreza envolve complexidades enormes. Muitas vezes matam à fome as malhas políticas, militares, tribais, diplomáticas, etc. Por isto, estudar e depois exercer eticamente artes como o direito, a ciência, a economia, a medicina, a arte, as humanidades, a educação, a prática política, etc., podem e devem ser feitas com vista a minimizar a pobreza dos homens.

Estar sempre do lado dos pobres é o sítio da Igreja e, por isso, de cada um de nós. A opção preferencial pelos pobres tem de ser concreta. Tanto pode ser ir para um país distante em missão como comprar preferencialmente marcas de produtos com selos de garantia de não exploração, mesmo que mais caros. Pode ser preferir desenvolver um projeto de investigação científica que otimiza medicamentos anti-maláricos em vez de apostar na ciência que crie novos produtos tecnológicos que só sirvam para alimentar superficialidades do ocidente.

Vale a pena ser Igreja para ser pobre porque só o pobre pode partilhar. A sensibilidade à pobreza e a solidariedade são mandatos humanistas e universais. As metodologias são diferentes e o nosso distintivo, apesar de alguma luta, é o primado da aceitação da vida como um dom. Estar em missão para alimentar a prontidão de acolher a riqueza do tempo, do espaço e do outro é um privilégio. É o que nos espera, esta disposição para coisa nenhuma e, assim, para tudo. A pobreza é para erradicar. Tocaremos amanhã esta plenitude que, agora, aperitivamos: já… mas ainda não!

JP in Textos 28 Maio, 2020

A saudade da missa é estruturalmente insuficiente

J. C. Paiva, A saudade da missa é estruturalmente insuficiente. Site PontoSJ (que se recomenda…). 10 de maio de 2020.

Disponível na íntegra aqui

Uma declaração de interesses prévia que, mais do que me colocar em ângulo menos suspeito, previna eventuais retiradas de frases ou ideias fora de contexto, que pervertam a mensagem que gostava de passar: como cristão, faz-me falta celebrar a eucaristia em comunidade; reconheço na celebração da missa uma oportunidade notável de congregação de fé; não entendo, nesta linha, que esta “quarentena missal” deva implicar qualquer desvalorização da eucaristia (pelo contrário…). Porém, algumas perguntas se me colocam…

1- Desejar e agradecer o regresso à missa com que horizontes?

Posso estar a exagerar mas, nem sei bem porquê, imaginei uma festa de alguns em agradecimento a Deus pelo regresso da missa, como os antigos dançavam, aplacando a ira dos deuses tiranos e mandatórios, em festa pela vinda da chuva… Em todo este processo de confinamento, como de resto já era na nossa vida, há desafios notáveis para resignificar constantemente as nossas imagens de Deus. Não sei se levamos a sério o risco de Deus em nós, na nossa liberdade e no pulsar do mundo, o Seu mistério amoroso de omnitransformação, que recusa caprichosamente marionetar o tempo e o espaço. Até admito a mim próprio agradecer a Deus o regresso da missa, quando chegar o tempo oportuno, em segurança sanitária e na mais elementar alteridade humana… e por isso também cristã. Mas, no meu caso, sinto um apelo a agradecer-Lhe este tempo que estou a viver, de desafio para um crescimento, pessoal e comunitário, numa Igreja em caminho. O que teve, tem e terá a dizer-nos esta experiência de não poder celebrar a partilha de um pão tão especial?

2- A ausência da missa é crucifixão?

Temo certa visão e vivência destas privações sacramentais como cruzes flagelantes a suportar. Não serão antes oportunidades de re-velar um sempre novo Cristo que espreita? De rever a nossa posição mais ou menos rotineira face às potencialidades dos sacramentos, que importa serem sempre novos? O Evangelho é Boa Nova e este Espírito novo que sopra não meteu férias com medo do vírus. Está aí, a soprar e a inspirar, a provocar e a co-mover. Voltar ao que era é sempre curto, recuar apenas não é o estilo de Jesus. Não será a privação sacramental, mais do que uma crucifixão, uma Páscoa que se adivinha para um novo renascimento? Não será claro o convite, mais do que a saudade pela saudade, a saber estar numa Igreja vazia (como o Papa bem mostrou)?

3- Haverá espaço para a diversidade celebrativa e para a Igreja doméstica?

O que nos tem trazido este tempo, enquanto crentes Católicos Romanos, é um desafio concentrado de provocação nascida há seis décadas de dentro da nossa Igreja, fruto de um fecundo discernimento eclesial de síntese de toda a tradição: sermos Povo de Deus em caminho. Os convites a certa desclericalização estão aí para quem os quiser ver e viver. Nasceram em cada casa, como cogumelos, verdadeiras igrejas domésticas, capazes de viver e celebrar Cristo no seu seio. Reinventaram-se rituais plenos de significado e de sentidos entre os mais próximos de cada habitação. A Alegria do Evangelho pode verter-se no cuidado da Casa Comum, em cada lar, precisamente através do tesouro que é a Família (e varro uma tríada de importantes escritos de Francisco…). Temos ainda algum caminho para andar mas estão a ser muitas as sementes colocadas na terra para gerarem, finalmente, batizados que, por o serem, são sacerdotes por Cristo, com Cristo e em Cristo…

4- Será de rever os ‘mandamentos da Igreja’?

A expressão ‘mandamentos da Igreja’ nunca foi da minha simpatia. Entendo melhor os mandamentos de Deus mas, mesmo esses, potenciados pela mediação eclesial, são tateamentos comunitários e pessoais muito complexos. Sempre preferi propostas a imposições. E é aqui que pode colocar-se em cima da mesa uma nova pedagogia eclesial: mais centrada na proposta a batizados responsáveis do que na deliberação dirigista. A exigência cristã é evidente mas ela há-de ser subida (ou descida?…) sempre e apenas se, for andaimada pela consciência pessoal exigente e interiorizada. Nos rituais como na moral, a fasquia não pode rastejar, mas pode se proposta em vez de imposta, porque assim fazia Cristo. Poderão dizer-me que sem regras e normativos entra a balda e a excessiva personalização. Não nego esse risco mas prefiro corrê-lo em detrimento do seguidismo cego e forçado. Queremos, será que queremos, que alguém vá à missa porque tem que ir? Não merece aquele altar da radical partilha do pão gente mais automotivada?

Há uma tensão evidente entre a riqueza da interioridade e a banalização da exterioridade, onde se podem inserir certos rituais, também religiosos. Este tempo de privação sacramental é uma clara purga de exterioridades, um convite à interioridade com Cristo, na nossa profundidade pessoal e coletiva, brotando da nossa sede e da interfragildade, que já existia, mas que o covid19 enalteceu. Todos sabemos do perigo da exterioridade das cerimónias e, portanto, da sua possível esterilidade. Ir à missa e ficar na mesma, sem crescimento interior, é o que não queremos nem cremos, como crentes em caminho.

5- Só uma Igreja que caminha com os mais pobres nos pode galvanizar

Só a Igreja dos pobres nos pode interessar. O Papa Francisco, a começar pelo nome que se deu, anda a semear. Tudo o que esta pandemia enalteceu foi o grito dos mais frágeis, que convocou universalmente todos os homens de boa vontade no planeta inteiro. Se somos todos frágeis, se somos todos buscadores, se somos todos pobres, pois a Igreja é dos pobres. Enquanto houver gente a sofrer, sem pão e sem amor, será tal a nossa inquietação aguda, a nossa mobilização central. A missa, é para nos fazer sair da missa em missão com os mais pobres, onde nos incluímos. Esta pandemia trouxe para a ribalta a atenção aos últimos, aos mais velhos, aos dos países mais vulneráveis, aos que clamam. O pão que se parte e reparte na missa é a fragmentação que nos parte o coração mas que, ao mesmo tempo, nos fascina pela agudeza da dádiva radical. É a celebração que nos impele a acudir aos mais necessitados. Essa, é, sem dúvida, a saudade do futuro que nos falta!

JP in Espiritualidade Textos 12 Maio, 2020

Teletrabalho em pós-pandemia: uma verdadeira oportunidade para o b-work

Artigo saído no Público a 28 de abril de 2020

Leitura direta em:

https://www.publico.pt/2020/04/28/opiniao/opiniao/teletrabalho-pospandemia-verdadeira-oportunidade-bwork-1914066

Há um conceito no jargão educativo que nos poderá ajudar a situar: blended learning (b-learning). A palavra blended (mistura) tem origem na junção de líquidos em sede de fabricação de whisky. Do ponto de vista do ensino-aprendizagem, há muito que se reflete e vai praticando a salutar mistura entre dinâmicas presenciais e atividades mediadas digitalmente. Esta pandemia forçou práticas (ou aproximações) de e-learning “puro”, que poderão vir a constituir rotinas de boas e equilibradas misturas, adiante, nas nossas escolas e universidades.

Do ponto de vista laboral, a circunstância atual precipitou dinâmicas de teletrabalho, que surpreenderam muitos trabalhadores, patrões e organizações.

A retoma gradual das condições sociais e laborais trará excelentes oportunidades de blended-work (b-work), mistura de trabalho em casa, mediado teledigitalmente, com trabalho presencial, num local de congregação organizacional. Face a estes desafios, convém ter em conta:

1. Sem autonomia responsabilizante não há bom teletrabalho…

É preciso que se abandonem as lideranças infantilizantes, que não confiam nos colaboradores e insistem nas práticas de gestão focadas na monitorização instrumental, senão mesmo em certo policiamento. Há que delegar, confiar e avaliar, pedindo responsabilidade e medindo produtividades.

Donos de empresas e líderes de organizações podem e devem ampliar as suas práticas e corrigir alguns vícios, gerando mais confiança e menos controlo, no sentido estrito do tempo. Todos nós nos apercebemos de pessoas que se deram muito bem com as práticas de teletrabalho nesta crise, mantendo os níveis de produtividade e, em muitos casos, ampliando-os.

2. Cada trabalhador é um caso…

O pior que poderia acontecer a um processo de abertura a b-work era industrializá-lo. Na verdade, cada caso é um caso. Haverá perfis que se não dão com o teletrabalho: conheço casos, principalmente no feminino, que preferem separar as águas e viver no regime ‘trabalho é trabalho, casa é casa’. No outro extremo, existem pessoas que se dão maravilhosamente com o trabalho a partir de casa: são gente normalmente muito metódica e organizada que concilia e alterna com tranquilidade os planos laboral, familiar, doméstico e quotidiano. Depois há situações híbridas, que preferem precisamente a mistura e se dariam muito bem com esquemas mistos um, dois ou três dias em casa e o resto na organização, fisicamente. Poder-se-ia ainda colocar a questão dos trabalhadores, funcionários públicos e não só, a quem se não vê perfil de autonomia, com tendência para o ser esguio e irresponsável, do tipo quanto menos melhor. A questão é complexa mas poderemos especular que um encostado será sempre um encostado, presencialmente ou virtualmente. E pode haver surpresas de produtividade, se não no curto prazo, no médio ou longo, ao ensaiar confiança a quem aparentemente não a merece.

3. A ocasião gerou competências novas

Não há qualquer dúvida que o confinamento gerou competências que pareciam adormecidas. As questões técnicas facilitaram-se: troca de ficheiros e manipulação digital, plataformas de reuniões como o Skype ou o Zoom, autoaprendizagem de procedimentos processuais e buscas em ambiente virtual, etc. Advinha-se melhor ainda com possíveis benfeitorias técnicas (largura de banda, sistemas áudio e vídeo, etc.). Por outro lado, houve também uma autopromoção da gestão dos tempos e de muitos procedimentos de autodisciplina de cada um dos cidadãos retidos em casa (turnos para gestão doméstica e de tomar conta dos filhos, necessidade endógena de rotinas, etc.).

4. É preciso portas abertas, do lado da legislação e dos políticos

Nada será possível sem um quadro legal (também ele mais aberto a dinamismos de confiança nas relações laborais) e sem incentivos políticos a estas oportunidades. No funcionalismo público, em particular, as chefias precisarão de lastro legal para ampliarem as suas delegações, como, de resto, aconteceu, no sentido amplo, durante esta pandemia. Também os sindicatos poderão participar nesta abertura, quer pela via de colocarem o assunto na agenda, quer também se compreenderem que o b-work, não implica uma total desregulação e terá de manter claros, a par dos direitos, os deveres dos trabalhadores, agora em formatos mais flexíveis.

5. Oportunidade de alívio na pressão urbana

Há consequências óbvias de alívio de alguma pressão urbana. Desde logo no trânsito (imagine-se Lisboa ou Porto sem um terço do tráfego ordinário…). A ponderar, também, a diminuição de emissão carbónica, de acidentes, de tensões no quotidiano social. Poderia haver condições para habitar zonas mais rurais, ou nas cinturas urbanas mais distantes das grandes cidades ou mesmo em regiões absolutamente interiores, se a componente laboral digital assumida fosse em grandes proporções. Oportunidades de regresso à Terra, no melhor dos sentidos.Trabalhadores mais felizes e emocionalmente equilibrados produzirão mais e melhor, deprimirão menos e ampliarão os potenciais de identidade e corporeidade das organizações. A sociedade será melhor e mais justa…

6. A vida pessoal e as dinâmicas familiares podem agradecer

Todas estas circunstâncias possibilitam igualmente uma revisão e uma requalificação de muitas relações (do eu com o eu, do eu com o tu e do eu com os outros). Como bastantes pessoas foram ensaiando nesta quarentena (porventura não desse logo, no início, mas gradualmente), o teletrabalho tem um potencial de otimizar momentos e encontros vários…

Por isto mesmo a produtividade tem de ser vista num nível mais profundo, que contemple mas ultrapasse a mera métrica contabilística do número de objetos produzidos. Trabalhadores mais felizes e emocionalmente equilibrados produzirão mais e melhor, deprimirão menos e ampliarão os potenciais de identidade e corporeidade das organizações. A sociedade será melhor e mais justa…

Está nas nossas mãos, enquanto sociedade, aproveitar para inovar estilos de vida e de trabalho. Há que concretizar a máxima, muito badalada mas nem por isso banal: fazer de uma crise uma oportunidade.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

JP in Textos 30 Abril, 2020

Coronavírus, disciplina e liberdade

J. C. Paiva, Coronavírus, disciplina e liberdade. Site PontoSJ (que se recomenda…). 02 de abril de 2020.

Disponível aqui

Neste retiro forçado a que estamos sendo sujeitos, pode inspirar-nos quem, voluntariamente, escolheu viver em clausura. Penso nas ordens conventuais e permito-me, por analogia realista, estabelecer algumas pontes. Face ao momento que vivemos não deixamos de ser procurantes radicais de liberdade, principalmente daquela liberdade interior que francamente liberta. A disciplina, bem vivida, estrutura a nossa liberdade.

1- Escolher o que a realidade impõe

Há uma máxima que sempre me seduziu e que serve como uma luva nos tempos que atravessamos: “é melhor querer o que faço do que fazer o que quero”. Neste sentido, acolhendo o recolhimento, por imperativos éticos e cívicos elementares, estamos a ensaiar liberdade. É verdade que o fazemos como milhões de cidadãos no mundo, mas escolher aceitar é desde logo uma resignificação e um subsídio de liberdade. Nos conventos, em particular, se perceberá internamente que a obediência é uma expressão de liberdade. Mas, fora do dinamismo monástico, podemos também entender e viver que obedecer (à realidade, como ela é) se confunde com a nossa própria liberdade interior.

2- As rotinas como escolas de vida

Dentro de um convento as regras são uma pauta fundamental. A nossa vida já se alimentaria de rotinas e regras mas, agora que estamos mais tempo e mais juntos em casa, esse pulsar é ainda mais vital. Algumas sugestões, em tempo de recolhimento intenso:

a) Marcar horas no dia e tentar (melhor, fazer por) cumprir para: acordar, deitar, refeições, exposição a notícias, leitura, estudo, permanência em redes sociais, filmes, acesso a telemóvel e computador, exercício físico, oração, tempo (francamente) livre, etc.

b) Fazer algum planeamento semanal de coisas como menus das refeições, visualização de filmes, arrumações, trabalho, alimentação espiritual (meditação, missas on line, leituras dirigidas), etc.

c) Respeitar o outro na sua liberdade, incluindo na sua fragilidade face a algumas regras e dificuldades. Mais ainda, quando, por feitios divergentes ou outras incompatibilidades interpessoais, não for possível partilhar as mesmas rotinas, criar alternativas e variantes de algumas regras, sem nunca perder de vista a importância de um tempo comum.

3- A atenção como virtude maior

Mais do que uma regra inspiradora, a atitude contemplativa é um estilo de vida nos conventos. Contemplar, numa aproximação mística, pode apontar para ver um tapete não tanto do seu avesso, com os nós e reticulações estruturais, mas antes do lado da harmonia e da beleza do resultado. Uma certa mística da atenção pode ser muito favorecida nestes tempos com mais tempo. Notar o cheiro do limão, valorizar a textura dos alimentos que se preparam, reforçar o sabor do que se come, olhar atentamente as ofertas da natureza. O treino desta atenção, reconfortante, por si só, pode constituir-se numa disciplina.

4- O recreio obrigatório

Não confundir disciplina com produtividade e, pelo contrário, valorizar o ‘inútil’. Por isto mesmo, mais do que em época normal, significar e não abdicar de momentos largos de sentido lúdico, como dançar, ouvir música, jogar, conversar. Como nos conventos, o recreio não é facultativo…

5- A meditação como possibilidade

Mesmo para quem não tem prática religiosa, a meditação tem vindo a apresentar-se como uma ginástica espiritual muito útil. Há técnicas e inspirações mas um ingrediente fundamental, também ele muito sagrado nos conventos, é o silêncio. Procurar espaço e tempo de silêncio pode ser uma rotina com muitos benefícios. Nesta fase da nossa vida podemos aprender melhor a encontrarmo-nos connosco mesmos e com uma Presença crucial. Podemos, também, aprender a saber estar sem fazer nada…

6- Avaliar com a grelha tensional disciplina/liberdade

Há que fazer um esforço por ir avaliando a nossa disciplina face à disciplina… Aferir, precisamente, a forma concreta como cumprimos ou não o que estabelecemos e, principalmente, se esse cumprimento foi realizado em liberdade interior e se nos levou à liberdade… O exame de consciência, prática ritual em algumas espiritualidades, que não dispensa o registo do que se acertou, pode ser um bom caminho.

Ao mesmo tempo, quase que paradoxalmente, ter rotinas, agendamentos e planeamento, é compatível com a mais radical abertura a imprevistos. Também por isto se diz que “as regras são para quebrar”, ainda que tal deva acontecer não tanto por fraqueza de persistência e vontade pessoais mas por “convite” dos acontecimentos e da própria liberdade dos outros.

7- A complexa metáfora educativa

Daria uma outra reflexão, e longa (…) o dilema de jogar a tensão disciplina/liberdade no processo educativo. A criatividade, a persistência e principalmente a paciência são pedidas em escala intensa diante de filhos em dinamismo educativo, seja qual for a sua idade. Valerá a pena um esforço grande em propor em vez de impor. Reservar a dose menor possível de imposição será um bom caminho, ainda que, em muitos casos, quando se belisca a liberdade de terceiros ou a própria segurança pessoal das crianças, tenha mesmo que ser… Há que envolver todos os membros da família no estabelecimento e ajuste de horários e regras para que a disciplina, tendo sido participada, possa ser escolhida, vivida e avaliada como uma alavanca de crescimento para todos.

Às crianças e jovens, em particular, podem ser proporcionadas novas jornadas alternativas, que conjugam novidade com rotina e aprendizagem de competências domésticas: cozinhar, limpar, passar a ferro, etc.

Uma referência, ainda, às enormes potencialidades do treino da meditação infantil e do ensaio da quietude corporal, tão preciosos e tão difíceis de praticar no reboliço ordinário, com as agendas das crianças, tipicamente, preenchidas de mais…

Por mais racional e até apetitoso que seja este trilho, disciplinar não é fácil. Melhor, a disciplina, como a vida, é difícil. Mas quem disse que o difícil é impossível? Onde está escrito que o difícil não gera frutos? A fé, terreno oferecido que nos quer como agricultores, é um caminho em movimento. A disciplina, como nos aponta a tradição e a experiência quotidiana, é um dos meios para viver fecundamente todas as fases da nossa história.

PS: Estou consciente que nesta crise há pelo menos três tipos de pessoas: 1) as que trabalham na frente de batalha, principalmente na área da saúde; 2) as que estão em sofrimento particular, ou por estarem doentes, ou por estarem a ser espetadoras do sofrimento de pessoas próximas, ou por se encontrarem em grande situação de contingência emocional, social, económica, laboral, etc; 3) os outros todos, onde me incluo. Esta reflexão é para este último grupo. Para os dois primeiros, além da minha disponibilidade frágil mas criativa, devolvo e ofereço a graça de praticar um silêncio em que os invoco…

JP in Textos 6 Abril, 2020

A ingratidão

J. C. Paiva, A ingratidão. Site PontoSJ (que se recomenda…). 16 de fevereiro de 2020.

Disponível aqui

A ingratidão

Sempre tive certas cócegas com a palavra, a ideia e o contexto psicossocial da ingratidão. Tudo se tem vindo a agudizar dentro de mim, a ponto de entender que este assunto merece uma reflexão escrita que, em tese, é a reprovação da ingratidão.

Vejamos algumas áreas de ingratidão onde tenho vindo a ser ora ator ora espetador, sempre cada vez mais (auto) crítico:

1. A ingratidão na família

Uma boa imagem deste contexto é uma simples frase que quase todos nós já ouvimos, já dissemos ou, pelo menos, já pensámos: “tanta coisa que eu fiz por este filho (ou outro familiar qualquer) e agora ele faz-me isto… que ingratidão”. Desmontemos a ideia. Num nível mais abaixo desta expressão e, principalmente, deste sentir ou modo de estar, mora o problema da expectativa e, em última análise, da não gratuitidade. A pergunta de ricochete é mesmo esta: “fizeste pelo teu filho mesmo?”. Se sim, então é gratuito, não espera retorno e, principalmente, não se cobra!

Tenho dito, a este propósito, que o problema de muitos de nós, sempre e de uma forma ou outra com o papel de educadores, é uma doença perigosa de ingratidão encapuçada, a que poderíamos chamar ‘expetativite aguda’. A bactéria-anzol ataca o próprio e os outros, abafa, gera culpabilidade, oprime e chantageia. É uma infeção que esmaga. Faz adoecer a liberdade e tende a proliferar em iminente contágio.  Para esta doença só conheço o antibiótico da gratidão!

Em dinamismo educativo, convém não confundir, há que estimular a gratidão e, nesse sentido, apenas nesse, importa promover a não ingratidão. Admito até algum treino de condicionamento primário de certa não ingratidão exterior (para começar, mas nunca como um fim). Há que favorecer ou mesmo forçar, principalmente em idades mais baixas, a não ingratidão. Dizer ‘muito obrigado’, por exemplo, é não só muito bonito como vale muito a pena. Pode ser um bom veículo (nem sempre bastante…) para a gratidão profunda, apropriada e essencial, de dar sem esperar receber.

2. A ingratidão no trabalho

Muitas frustrações laborais residem no tempo interior gasto com a ingratidão. “Dei tanto a este escritório, a esta escola, a este hospital…”. Não me cabe julgar os (sempre legítimos e validáveis) sentimentos e emoções de quem não se sente reconhecido. Mas é também mais fundo, precisamente na questão do reconhecimento, que está o âmago da questão. A procura de reconhecimento é estrutural e, de alguma forma, é nosso ADN existencial. Contudo, é capaz de espreitar liberdade naquilo a que poderíamos chamar a ‘consequencialidade do reconhecimento’, em oposição aos gestos e colocações apriorísticas da ‘causalidade do reconhecimento’. Isto é, em meio laboral e não só, talvez haja caminho para que o reconhecimento seja uma consequência (não uma causa) daquilo que faço e daquilo que sou. Se assim for, se me centrar na consequência, claramente se reduz espaço à ingratidão. No trabalho e não só convém insistir na auto-pergunta mestra: “para onde corro e o que me faz correr?”. As colocações que enfatizem o serviço e uma realização por essa via reduzem os terrenos da tentação da ingratidão…

3. A ingratidão na religião

A ingratidão no terreno religioso e particularmente em sede de missão e de trabalho apostólico tem contornos semelhantes aos da família ou do trabalho mas, em certo sentido, é redobradamente injustificada. Aqui não há lugar para a procura de si próprio mas antes para um serviço, ainda por cima um serviço que se coaduna com o nós, muito mais do que com o eu.

Impressiona-me imenso, em cenário religioso, a invocação da ingratidão, seja em que sentido for. Pode ser do tipo “dei tanto a esta casa/causa e agora fazem-me isto” ou “tantas missas e doações, tanta benfeitoria e agora não tenho direito a nada”. Lá no fundo, normalmente muito embrulhado em emocionalidade difusa e ofuscante, está uma compreensível mas rechaçável procura autocentrada de reconhecimento.

Tenho uma visão muito otimista, devo dizê-lo sem ironia, das tensões do tipo eclesial que levam pessoas a aborrecer-se e a saírem tristes e magoadas de certas empreitadas apostólicas, precisamente afetadas pelo que chamarão, elas próprias, de ingratidão. Trata-se de uma revelação positiva para o sistema. É que isso resulta numa purga de gratuitidade e, no serviço de uma causa, religiosa ou outra, não temos muito a ganhar com a participação de pessoas que, fundamentalmente, se procuram apenas a si mesmas.

Poderíamos ainda escamotear a ingratidão na própria oração. De forma sintética, as ingratidões face à transcendência espelham imagens de Deus porventura desfocadas mas, acima de tudo, a projeção pessoal de alguém cheio de si.

4. A ingratidão do outro

Uma última nota sobre o incómodo que nos causa, tipicamente, a ingratidão do outro. Este sentimento pode até ser empático e não autocentrado e é muito frequente nos educadores. Se o meu filho não for agradecido, tenho de reconhecer, até meramente no plano social, que isso me incomoda. Aqui temos de puxar de uma arma cuja a expressão pode ser cruel mas que ajuda: “se o outro é ingrato, problema dele”. Isto é, eu posso propor mais gratidão, como proposta pedagógica de crescimento. Mas não será do meu crescimento interior forçar o crescimento dos outros. Antes importa o que está na minha mão, que é proporcionar o meu crescimento face ao que julgo não ser o crescimento do outro… Há uma redundância deliberada da palavra crescimento, mas isto daria outro artigo…

A ingratidão, contas feitas, lá no fundo, tem uma âncora que nos autorreferencia. É nessa estrada, a da ingratidão, que caminham as pegadas perigosas daquilo que poderíamos chamar uma teologia de mérito, autorreferenciada e sombreadora da teologia que liberta, precisamente a teologia da Graça.

Estava capaz de generalizar (sempre perigoso…) e recomendar a mim próprio uma radical desconfiança da ingratidão. Quase sempre, talvez sempre, soa a ‘mau espírito’…

Arriscaria dizer que, num sentido que deverá ser entendido em contexto, a genuína gratuitidade radica numa questão que atravessa esta reflexão: “o que me devem aqueles a quem eu (me) dou? A resposta libertadora, que demora uma vida a construir é esta e é muito simples: nada!

Qual é o avesso da ingratidão? É, precisamente, a gratidão. Que é, por sua vez, o tutano da fé. Acreditar é apoiar-se na ideia vivível de um Deus que só sabe amar e criar e que resulta numa enorme dádiva. É, portanto, ser gratidão. Isso basta…

PS: Estas ideias seriam mal entendidas, também no plano sociopolítico, se se confundisse o convite à gratidão com a apologia de um qualquer posicionamento passivo, sem espaço para a revindicação e para a denúncia e para a procura da justiça. “Sê grato e amocha”, não é o lema subjacente.

JP in Espiritualidade Textos 20 Fevereiro, 2020