Natal amanhã, Natal hoje
Se vai nascer, seja o que for, em certo sentido, já nasceu e nascerá. Há grande parte dos sonhos que já são realidade em movimento brotante, antes mesmo de se desvelarem na história do tempo.
Se vai nascer, seja o que for, em certo sentido, já nasceu e nascerá. Há grande parte dos sonhos que já são realidade em movimento brotante, antes mesmo de se desvelarem na história do tempo.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Is 7, 10-14
«O próprio Senhor vos dará um sinal»
Em tempos de Advento as leituras bíblicas colocam ênfase nos sinais que Deus deu, dá e dará ao seu povo. A nossa esperança reside na fé mas há sinais que vão confirmando os nossos passos, amparando os nossos “mergulhos”, dando luz aos nossos “saltos no escuro”. Há sinais à nossa mercê que precisam dum trabalho dos nossos olhos. Assim como quem pega num grão discreto de areia e nele pode ver cristais de beleza impressionante, também todos os rostos humanos, mesmo os mais rudes, são sinais de um Deus que criou, está a criar e assiste todos os homens.
Todos conhecemos o convite à hospitalidade, ao acolhimento do outro. O conceito e o convite (à hospitalidade) são tão ricos, que servem igualmente para a ‘gestão interior’ de emoções e pensamentos. Não somos nem (só) as nossas emoções e nem (só) os nossos pensamentos. Mas é boa técnica, auto-estimante e libertadora, acolher pensamentos e emoções como hóspedes: que entrem na nossa casa, sejam quais forem. Melhor do que lutar (muito menos negar), há que receber tudo o que somos como numa (boa) hospedaria…
Em 1953 há um gesto simbólico da Igreja muito curioso: o Padre Leonard Feeney é excomungado da Igreja (excluído) por recusar a ideia muito própria do Concílio Vaticano II, segundo a qual “há salvação fora da Igreja”. As consequências são simples e podem reproduzir-se assim: “não há lugar na Igreja Católica Romana para quem entenda que não há salvação fora da Igreja”…
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se II Tg 5, 7-10
«Esperai com paciência a vinda do Senhor»
A Epístola de Tiago aponta-nos para a paciência como virtude central na fé. A par da persistência, do propósito, do exercício, do trabalho, da edificação, da ação, da vontade e da disciplina, a paciência é uma espécie de cenário de fundo crucial no dinamismo da crença e, porventura, o horizonte do Advento. Quando o mundo nos esmaga, quando nós próprios nos reconhecemos carentes (mesmo que crentes), quando constatamos dentro e fora de nós mecanismos de fuga do essencial (preços de liberdades…), eclode como urgência a mãe de todas as virtudes: a paciência. A paciência é também saber pisar o deserto, é saber estar. A paciência, a bem dizer, é o distintivo da fé.
O que a vida nos demanda é uma doce rendição: ativos, como se tudo dependesse de nós, mas rendidos, ganhando consciência da beleza da graça…
A evolução da religião é compreensivelmente lenta. Observe-se o caso da Igreja Católica: com cerca de dois mil anos de história, milhões de fiéis e, actualmente, cerca de meio milhão de padres e religiosos, tem uma inércia própria. A inércia, na sua raiz científica, relaciona-se com uma tendência que todos os corpos possuem para manter o seu estado (de movimento ou repouso). Quanto maior massa, maior inércia… Por outro lado, estes anos de história e tradição e este volume de pessoas e de conhecimentos, congregam uma sabedoria e um património que dão consistência e corpo à cultura humana, podendo ajudar a humanidade a ter Deus como referência fundamental.
Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mt 3, 1-12
«Uma voz clama no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas’»
Esta voz de João Batista que clama no deserto é, também, um símbolo de hoje. Pelo menos em dois aspetos: 1) o grito que damos ao olhar um mundo incompleto e insuficiente, carente e ainda violento e injusto; 2) o grito que podemos dar a nós mesmos, quando nos recolhemos e constatamos a nossa própria fragilidade e incompletude. Em ambos os casos, para fora e dentro de nós mesmos, é uma atenção à mudança que marca os tempos de Advento. Endireitar as veredas, começando principalmente pelo nosso interior, é o caminho a fazer, sempre sem auto-culpabilidade e pressão, antes com doçura e certeza de aceitação…
Recordo com particular simbolismo o dia em que, numa brincadeira corporal bastante física com os meus dois filhos maiores, eles os dois, ao contrário do que acontecia até então, me imobilizaram e dominaram. Estavam maiores e mais fortes que eu. Pensei e disse a mim mesmo: “se fosse o poder e a força que norteassem a nossa relação, esta começava a declinar-se a partir daquele momento”. É um pouco neste sentido que ouso dizer que a turbulência da adolescência se trabalha na infância, precisamente por via do treino do diálogo e do despoder… As pedagogias mais baseadas na força e no poder padecem de futuro livre…
Admito que, dos vários diálogos religiosos na agenda, aquele com o Islão seja dos mais desafiantes e complexos. Reconhecendo essas dificuldades, não poderei deixar de ser um apostante no diálogo universal inter-religioso e, por isso, também com o Islão. Não me vem esta convicção apenas do que leio e elaboro teoricamente. Tive o previlégio de viver três semanas a servir uma comunidade de mais de quarenta muçulmanos em fuga da pobreza. Impressionou-me como a fé e a esperança destes homens, de olhos postos em Deus, em Maomé ou algures nos céus sem nome, os fez superar e achar que era possível trilhar aquele caminho tão difícil, que não é ainda terra de mel (pode até nem ser) mas que precisa de pouco para ser melhor do que o pouco que tinham e de onde fugiram…