ciências cognitivas e teologia

As ciências cognitivas lançam novos desafios à compreensão do ser humano e da sua experiência religiosa, com base no estudo do cérebro e da mente. A teologia só tem a ganhar se levar a sério os novos dados que lhe vêm da ciência. Os teólogos não se poderão limitar a achar interessantes as teorias científicas, como se não tivessem de as estudar e levar a sério enquanto teólogos. A teologia deve retirar das teorias científicas fundamentadas as implicações que introduzam modificações no próprio discurso teológico e na compreensão que o cristianismo tem de si mesmo. De outra forma, os teólogos poderão estar a fazer um discurso cada vez mais irrelevante e a criar conflitos desnecessários com a ciência em particular e com a cultura, em geral. Depois, convém sempre sublinhar, teologia não é Fé. A tudo falta uma pitada de vivibilidade…

JP in Ciência Espiritualidade 10 Março, 2020

o Seu rosto ficou resplandecente como o Sol

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mt 17, 1-9

«o Seu rosto ficou resplandecente como o Sol»

A transfiguração de Jesus revela com clareza a filiação de Jesus. Em chave de leitura de fé, esta cena aponta-nos o Filho de Deus. Implícito, está igualmente o convite aos que, olhando Jesus, se deixam transfigurar a eles próprios. É este também o desafio que se coloca a cada um de nós: transfigurarmo-nos, reconhecermo-nos sempre buscados e vivermos como Filhos de Deus, assemelhando-nos a Ele, nesse reconhecimento e nessa forma de viver. No limite, fruto da alegria brotante de uma vida transfigurada, o nosso rosto poderá ser “resplandecente como o Sol”. Está visto que a Quaresma, enquanto caminho de regresso a Deus, não tem a ver como rostos macambúzios…

JP in Espiritualidade Frases 8 Março, 2020

moribundisse

Moribundisse

 

Na moribundisse

desse instante

…longo instante…

se radicaliza

a angústia,

a esperança,

a dúvida e

a certeza.

Ali se joga

em escala

intensa,

em alto grau,

em câmara lenta

rápida

o que a vida

teceu

no tempo.

…Desde o útero

desde o ventre

do cosmos.

Fornos, 4 de dezembro de 2017

JP in Espiritualidade Poemas 6 Março, 2020

tudo em todos

Há uma analogia matemática que nos pode ajudar a aproximar da ideia de que tudo é sagrado, de que há um certo “tudo em todos”: Deus é uma esfera infinita com o centro em todos os pontos e sem círculos (sem limite).

JP in Ciência Espiritualidade 28 Fevereiro, 2020

se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mt 5, 38-48

«Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda»

 

Dar a outra face, podemos dizer, não é natural. É a chave, porém, para quebrar as espirais de violência que existem no mundo: as das guerras à escala dos países mas também as das pequenas guerras do dia-a-dia. Dar a outra face não é ser ingénuo, nem tão pouco forçar relações inconvenientes ou não queridas. Dar a outra face é até compatível com naturais maus sentimentos por outras pessoas. A originalidade está no coração, na abertura, na oportunidade que sempre podemos reservar para quem nos faz mal. Rezar por quem nos ofende é também um caminho que podemos percorrer, neste difícil mas libertador desiderato do perdão.

JP in Espiritualidade Frases 22 Fevereiro, 2020

A ingratidão

J. C. Paiva, A ingratidão. Site PontoSJ (que se recomenda…). 16 de fevereiro de 2020.

Disponível aqui

A ingratidão

Sempre tive certas cócegas com a palavra, a ideia e o contexto psicossocial da ingratidão. Tudo se tem vindo a agudizar dentro de mim, a ponto de entender que este assunto merece uma reflexão escrita que, em tese, é a reprovação da ingratidão.

Vejamos algumas áreas de ingratidão onde tenho vindo a ser ora ator ora espetador, sempre cada vez mais (auto) crítico:

1. A ingratidão na família

Uma boa imagem deste contexto é uma simples frase que quase todos nós já ouvimos, já dissemos ou, pelo menos, já pensámos: “tanta coisa que eu fiz por este filho (ou outro familiar qualquer) e agora ele faz-me isto… que ingratidão”. Desmontemos a ideia. Num nível mais abaixo desta expressão e, principalmente, deste sentir ou modo de estar, mora o problema da expectativa e, em última análise, da não gratuitidade. A pergunta de ricochete é mesmo esta: “fizeste pelo teu filho mesmo?”. Se sim, então é gratuito, não espera retorno e, principalmente, não se cobra!

Tenho dito, a este propósito, que o problema de muitos de nós, sempre e de uma forma ou outra com o papel de educadores, é uma doença perigosa de ingratidão encapuçada, a que poderíamos chamar ‘expetativite aguda’. A bactéria-anzol ataca o próprio e os outros, abafa, gera culpabilidade, oprime e chantageia. É uma infeção que esmaga. Faz adoecer a liberdade e tende a proliferar em iminente contágio.  Para esta doença só conheço o antibiótico da gratidão!

Em dinamismo educativo, convém não confundir, há que estimular a gratidão e, nesse sentido, apenas nesse, importa promover a não ingratidão. Admito até algum treino de condicionamento primário de certa não ingratidão exterior (para começar, mas nunca como um fim). Há que favorecer ou mesmo forçar, principalmente em idades mais baixas, a não ingratidão. Dizer ‘muito obrigado’, por exemplo, é não só muito bonito como vale muito a pena. Pode ser um bom veículo (nem sempre bastante…) para a gratidão profunda, apropriada e essencial, de dar sem esperar receber.

2. A ingratidão no trabalho

Muitas frustrações laborais residem no tempo interior gasto com a ingratidão. “Dei tanto a este escritório, a esta escola, a este hospital…”. Não me cabe julgar os (sempre legítimos e validáveis) sentimentos e emoções de quem não se sente reconhecido. Mas é também mais fundo, precisamente na questão do reconhecimento, que está o âmago da questão. A procura de reconhecimento é estrutural e, de alguma forma, é nosso ADN existencial. Contudo, é capaz de espreitar liberdade naquilo a que poderíamos chamar a ‘consequencialidade do reconhecimento’, em oposição aos gestos e colocações apriorísticas da ‘causalidade do reconhecimento’. Isto é, em meio laboral e não só, talvez haja caminho para que o reconhecimento seja uma consequência (não uma causa) daquilo que faço e daquilo que sou. Se assim for, se me centrar na consequência, claramente se reduz espaço à ingratidão. No trabalho e não só convém insistir na auto-pergunta mestra: “para onde corro e o que me faz correr?”. As colocações que enfatizem o serviço e uma realização por essa via reduzem os terrenos da tentação da ingratidão…

3. A ingratidão na religião

A ingratidão no terreno religioso e particularmente em sede de missão e de trabalho apostólico tem contornos semelhantes aos da família ou do trabalho mas, em certo sentido, é redobradamente injustificada. Aqui não há lugar para a procura de si próprio mas antes para um serviço, ainda por cima um serviço que se coaduna com o nós, muito mais do que com o eu.

Impressiona-me imenso, em cenário religioso, a invocação da ingratidão, seja em que sentido for. Pode ser do tipo “dei tanto a esta casa/causa e agora fazem-me isto” ou “tantas missas e doações, tanta benfeitoria e agora não tenho direito a nada”. Lá no fundo, normalmente muito embrulhado em emocionalidade difusa e ofuscante, está uma compreensível mas rechaçável procura autocentrada de reconhecimento.

Tenho uma visão muito otimista, devo dizê-lo sem ironia, das tensões do tipo eclesial que levam pessoas a aborrecer-se e a saírem tristes e magoadas de certas empreitadas apostólicas, precisamente afetadas pelo que chamarão, elas próprias, de ingratidão. Trata-se de uma revelação positiva para o sistema. É que isso resulta numa purga de gratuitidade e, no serviço de uma causa, religiosa ou outra, não temos muito a ganhar com a participação de pessoas que, fundamentalmente, se procuram apenas a si mesmas.

Poderíamos ainda escamotear a ingratidão na própria oração. De forma sintética, as ingratidões face à transcendência espelham imagens de Deus porventura desfocadas mas, acima de tudo, a projeção pessoal de alguém cheio de si.

4. A ingratidão do outro

Uma última nota sobre o incómodo que nos causa, tipicamente, a ingratidão do outro. Este sentimento pode até ser empático e não autocentrado e é muito frequente nos educadores. Se o meu filho não for agradecido, tenho de reconhecer, até meramente no plano social, que isso me incomoda. Aqui temos de puxar de uma arma cuja a expressão pode ser cruel mas que ajuda: “se o outro é ingrato, problema dele”. Isto é, eu posso propor mais gratidão, como proposta pedagógica de crescimento. Mas não será do meu crescimento interior forçar o crescimento dos outros. Antes importa o que está na minha mão, que é proporcionar o meu crescimento face ao que julgo não ser o crescimento do outro… Há uma redundância deliberada da palavra crescimento, mas isto daria outro artigo…

A ingratidão, contas feitas, lá no fundo, tem uma âncora que nos autorreferencia. É nessa estrada, a da ingratidão, que caminham as pegadas perigosas daquilo que poderíamos chamar uma teologia de mérito, autorreferenciada e sombreadora da teologia que liberta, precisamente a teologia da Graça.

Estava capaz de generalizar (sempre perigoso…) e recomendar a mim próprio uma radical desconfiança da ingratidão. Quase sempre, talvez sempre, soa a ‘mau espírito’…

Arriscaria dizer que, num sentido que deverá ser entendido em contexto, a genuína gratuitidade radica numa questão que atravessa esta reflexão: “o que me devem aqueles a quem eu (me) dou? A resposta libertadora, que demora uma vida a construir é esta e é muito simples: nada!

Qual é o avesso da ingratidão? É, precisamente, a gratidão. Que é, por sua vez, o tutano da fé. Acreditar é apoiar-se na ideia vivível de um Deus que só sabe amar e criar e que resulta numa enorme dádiva. É, portanto, ser gratidão. Isso basta…

PS: Estas ideias seriam mal entendidas, também no plano sociopolítico, se se confundisse o convite à gratidão com a apologia de um qualquer posicionamento passivo, sem espaço para a revindicação e para a denúncia e para a procura da justiça. “Sê grato e amocha”, não é o lema subjacente.

JP in Espiritualidade Textos 20 Fevereiro, 2020

A vossa lei faz as minhas delícias

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Slm 118

«A vossa lei faz as minhas delícias»

As leis, no sentido jurídico e na sensação que causam nas pessoas, têm uma carga tipicamente pesada. Embora feitas, em princípio, para ajudar o homem e para lhe dar segurança, as leis provocam constrangimentos. É curioso ver no Antigo Testamento a palavra “delícia” associada à lei de Deus. Saborear a lei do Senhor como uma delícia implica a consciência vivida de uma lei especial. A lei de Deus só pode ser saborosa se for radicalmente enraizada no amor. Em Jesus, esta lei promete ser ‘jugo leve e alívio’ e o melhor teste dessa promessa seria ver a vida dos cristãos a espelhar a lei cristã como doce (mesmo que não fácil…).

JP in Espiritualidade Frases 16 Fevereiro, 2020

o ‘início’ da Criação…

O Livro do Génesis não pretende narrar a criação da Humanidade a partir de um casal original, Adão e Eva, no sexto dia da criação, mas apenas que a Humani- dade, tal como todo o universo, é uma criação de Deus, qualquer que tenha sido o processo evolutivo que deu origem aos seres humanos. Não estamos a falar de origens mas de criação… A aceitação do evolucionismo pela teologia cristã não resolveu, porém, algumas questões teológicas como, por exemplo, o pecado original e o «momento» do início da Humanidade na longa cadeia evolutiva dos primatas…

Sobre o início da humanidade, Joseph Ratzinger procura uma explicação com base numa relação dialogal. Diz ele, pesando as palavras e entreabrindo uma fresta da janela: «A argila tornou-se ser humano no momento em que uma criatura, pela primeira vez, mesmo que de forma muito velada, foi capaz de formar uma ideia de Deus. O primeiro tu que o ser humano — por mais balbuciado que fosse — dirigiu a Deus é o momento em que o espírito se levantou no mundo. Aqui foi ultrapassado o rubicão da criação humana»

JP in Ciência Espiritualidade 10 Fevereiro, 2020

apresentei-me diante de vós cheio de fraqueza e de temor

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Cor 2, 1-5

«apresentei-me diante de vós cheio de fraqueza e de temor»

É curioso reparar na explicitação de Paulo em relação aos seus sentimentos e emoções enquanto protagonista da atividade apostólica. Ele não se reconheceria como o ‘herói de Cristo’, sem mácula e sem dúvidas, mas o ser frágil que se faz forte pela esperança e não pela impecabilidade. “Não me apresentei com sublimidade de linguagem ou sabedoria”, diz Paulo, como que dizendo que para se ser apóstolo não é preciso dons extraordinários mas antes humildade e confiança, fé num Deus que é amor e que se quer revelar a todos, por via de cada um de nós. A experiência de seguimento cristão poderá tornar-nos, em certo sentido, ‘maiores do que nós mesmos’. Mas o ponto de partida desse crescimento é, precisamente, a consciência de fraqueza e de fragilidade.

JP in Espiritualidade Frases 8 Fevereiro, 2020