Ciência e religião: Conflito, independência, diálogo e integração

J. C. Paiva, Ciência e religião: Conflito, independência, diálogo e integração. Site PontoSJ (que se recomenda…). 05 de outubro de 2018.

 

Disponível aqui

 

  • – – –

As relações entre ciência e religião, ontem e hoje, são marcadas por certa tensão.

A ciência tem nos nossos dias um valor social impressionante. Tal circunstância, sem escamotear os óbvios benefícios da empresa científica, favorece o perigo de a transformar numa ideologia (cientificismo). Assim não deveria ser pois não podemos extrair, pela via filosófica, pelo seu saber ou pelas suas atividades, qualquer ilação ideológica à ciência. Pelo contrário, parte das enormes virtudes da ciência, no seu nascimento, no seu desenvolvimento e na sua prospetiva devem muito à sua independência dos regimes, das ideologias, das raças e crenças dos cientistas. Ajuda muito esta clarificação pois na maior parte das discussões desnecessariamente divergentes sobre ciência e religião, está (erradamente) a usar-se a ciência como uma ideologia. Muito ganham os cientistas em reconhecer as limitações deste tipo de conhecimento, que caminha como um olhar, entre outros, sobre a realidade cósmica, incluindo o homem. A par da ciência, outros questionamentos, como o ético, o artístico e o religioso, cruzam-se na nossa consciência pessoal e coletiva.

Tão venenosos como a ideologia cientificista são todos os fundamentalismos do tipo religioso.

Na tentativa de clarificar essa complexa relação, o físico americano Ian Barbour propôs, nos finais do século XX, quatro dimensões, a saber: conflito, independência, diálogo e integração.

1- Conflito.

As situações de conflito são conhecidas na história da ciência. O caso Galileo é sobejamente conhecido (não necessariamente bem compreendido, já que os conflitos gerados podem ter mais a ver com contextos históricos da reforma e contra-reforma do que com ciência e religião). Ainda hoje, nas redes sociais, em livros e no senso comum, há espaço de conflitualidade. Muitos desses aspetos residem em posições extremadas de materialismo científico e de fundamentalismo religioso, principalmente relacionado com a literalidade dos textos sagrados. Por vezes, sob uma capa aparentemente inofensiva, os comunicadores de ciência deixam passar alguns traços de fundamentalismo ideológico. É o caso do brilhante Carl Sagan que, a dado passo, escreve: “o Cosmos é tudo o que existe, que existiu e que existirá!”…

2- Independência.

Focados nas diferentes linguagens, metodologias, limitações e objetos de estudo podemos valorizar essas mesmas diferenças e associar independência (ou autonomia) a estas duas áreas: ciência e religião. Esta consciência de autonomia vem do tempo medieval, onde já se dizia que o livro da natureza e o livro da revelação são do mesmo autor (…) e, como tal, não se podem contradizer.  Inclui-se na independência da ciência o sacudimento de quaisquer secularismos. João Paulo II explicitou-o bem: “ciência e religião devem preservar a sua autonomia e a sua peculiaridade. Cada uma tem os seus próprios princípios e formas de proceder”. Podemos ter posições excessivas no que concerne à dimensão da independência, que colocam a tónica numa tal diferenciação que tange a esquizofrenia. Neste sentido, o físico Plank radicaliza a autonomia com a ideia de que ciência e religião são duas vias paralelas que só se encontram no infinito. Nem tanto, talvez haja algum entrançado..

3- Diálogo.

Se a dimensão de independência é tomada radicalmente, nem sequer há espaço para o conflito. O diálogo entre ciência e religião é possível e porventura necessário e útil porque há que construir pontes na diferença. Não dialogar (encrostados na radical autonomia) faria lembrar os casais que não discutem, não conflituam e não dialogam… porque não falam nos assuntos de potencial fraturante (condenação ao fracasso relacional, como sabemos…). Uma das formas de entender o manancial de diálogo entre ciência e religião é compreender estas realidade no contexto mais amplo da noção de cultura. O caldo cultural, onde se misturam a realidade da vida, as relações, a arte e tudo mais que disser respeito à humanidade, ai se entendem melhor as urgências dialogantes, incluindo aquelas que dizem respeito às diferentes perspetivas do olhar científico e do olhar religioso. A neutralidade não é boa conselheira… Apesar das diferenças nos seus aspetos ontológicos, epistemológicos e metodológicos, ciência e religião têm matizes comuns, correlações e paralelismos potenciais, concretamente face às grandes questões relacionadas, por exemplo, com a origem do universo e com a evolução humana.

4- Integração

A integração seria uma dimensão um tanto mais comprometedora entre ciência e religião. É, porventura, destes quatro enunciados, a área mais polémica. As teses integrativas arriscam beliscar a autonomia. Há exemplos de boas e mais duvidosas integrações. Parece-me cheia de potencial, por exemplo, a abordagem de Chardin que se inspira nas teorias da evolução para dar novos ventos à teologia, principalmente no que diz respeito ao pecado original. Já considero muito duvidosas, senão perniciosas, as influência da teoria do “design inteligente”, que estabelece veleidades integrativas com base numa perfeita confusão entre o objeto e a metodologia da ciência e as questões últimas que importam a fé. É bom, por isso, não omitir o que é diferente, preferindo, sempre que possível, a linguagem da analogia, em vez da inferência. Por exemplo, dizer: “assim como a espécie humana parece em constante evolução, podemos, por analogia, referir-nos aos dinamismos evolutivos da própria vida de Cristo” será mais prudente do que invocar, em excessividade integrativa ideias do tipo “como a ciência descobriu a teoria do big-bang, então existe Deus”.

A proposta de Barbour, um cristão da Igreja reformada que venceu o prémio Templeton, é bastante útil embora não elimine as ambiguidades: há ideias e argumentos que vistas de um certo ângulo, se situam numa área de conflito mas que, noutra perspetiva, poderão, por exemplo, ter certo caráter integrativo. Notar ainda que não há qualquer cronologia histórica (do conflito à integração) nem sequer juízo de valor sobre estas quatro dimensões. Nos nossos dias, há aspetos de algum conflito no terreno misto da ciência e da religião, no domínio ético, por exemplo, que são compreensíveis e têm de ser assumidos.

Há autores que preferem a explicitação de uma outra (quinta) dimensão, algures entre o diálogo e a integração, a que chamam complementaridade. Trata-se de uma abordagem curiosa, convidando a uma compatibilidade mutuamente potenciadora, como acontece, por exemplo, com a religião e a arte.

Sem, obviamente, dependermos da ciência para suportar a nossa fé, é também certo que esta forma de olhar e compreender o mundo que é praticada pelos cientistas nos pode induzir aprofundamentos de natureza religiosa. Notar que a ciência tem uma forte componente de procura e encontro com a beleza, na beleza que é o universo (assim também é com Deus, que é cúmplice do belo…).  Do ponto de vista filosófico, também o conhecimento científico pode levar-nos à religião, desde logo porque o mistério de conseguirmos tatear o funcionamento do cosmos nos pode convidar a encontrar uma causa última que justifique a nossa própria racionalidade. Subindo a parada, um mundo contingente e inteligível, como  constatamos e sentimos, abre hipóteses a um Deus necessário e racionalizável…

a química e a pressa

A química e a pressa

 

A pressa

é o pecado

do mundo.

Pecar,

fazer mal a mim

e a ti,

é não esperar

e catalisar

o que tinha

mecanismo

previsto

com aquela ativação.

Para quê

baixar em força

aquele valor?

Mais valia deixar,

deixar em amor.

Subir como criança

a brincar

que vai ao alto e,

passando a barreira,

ali contempla

confia e delega.

E desce a rir

…como num escorrega…

in Paiva, J. C., Quase poesia quase química (2012) (e-book). Lisboa, Sociedade Portuguesa de Química.

acessível aqui (porventura enriquecido com uma ilustração)

 

JP in Ciência Poemas Química 16 Outubro, 2018

pegadas em areia molhada

É um previlégio enorme haver espaço na areia molhada da praia para as minhas e para as tuas pegadas. Espaço imenso e dinâmico, onde cabe sempre mais um par de pés para fazer caminhos. Se por hipótese (quase absurda) saturassem as marcas côncovas no solo, viria o mar em ondas refazer espaço, por cortesia da Lua, mãe das marés…

JP in Ciência Espiritualidade Frases 12 Outubro, 2018

revoluções…

Fala-se em quatro revoluções: a máquina a vapor, a gasolina, a internet, a inteligência artificial. Mecaniscismos, tecnologias, otimizações operacionais… Importantes, mas aquém da grande revolução urgente, que é do Homem e dos seus Valores.

JP in Ciência Frases 25 Agosto, 2018

Porque Pirilampiscam os Pirilampos?… E muitas outras perguntas luminosas sobre química

Livro editado pela Gradiva, em co-autoria com Carla Morais

Referência: C. Morais, J. C. Paiva, Porque Pirilampiscam os Pirilampos?… E muitas outras perguntas luminosas sobre química. Gradiva, Lisboa, 2014

Para adquirir o livro contactar: www.gradiva.pt

Nota: neste blog, pode haver pequenos textos constantes do livro, com etiquetas, disponibilizados ‘avulso’.

 

A ciência ao alcance de todos, neste livro acessível, prático e esclarecedor. Recheado de factos curiosos e respostas aos mais intrigantes fenómenos, será apreciado pelos miúdos e graúdos que querem saber como funciona o mundo à sua volta. Uma bela edição, apelativa e informativa.

Porque Pirilampiscam os Pirilampos, usando de empréstimo a criativa palavra inventada por Mia Couto, é umas das curiosidades abordada neste livro de divulgação de química. Para miúdos e graúdos, em linguagem simples e acessível, abordam-se os mais variados temas da química do dia-a-dia: dos pirilampos à cozinha, passando pelos plásticos, pelo perfume e pela chuva. Numa viagem plena de desafiantes “porquês”, apresenta-se a química como uma ciência central. O funcionamento do ozono estratosférico como filtro solar, a utilização de bioetanol, biodiesel e biogás como possíveis soluções energéticas, as indesejáveis dioxinas e furanos, bem como o prometedor grafeno e os novos materiais, são assuntos-matéria-prima para a construção de perguntas e de alguns trilhos de resposta.

A química está por todo o lado e é fascinante saber como são as coisas e como se transformam umas nas outras. O conhecimento científico abre horizontes e estimula a vida. A química, de entre todas as ciências, é umas das mais determinantes na evolução da qualidade de vida e uma das mais estimulantes para o espírito. Com 38 questões, pistas para lhes responder e novas questões que, a propósito, se levantam, tenta fazer-se um pouco mais de luz. Vale a pena espreitar e descobrir porque pirilampiscam os pirilampos… e muitas outras questões luminosas sobre química!

 

índice:

Porque foi importante a alquimia? ………………………………………. 11

Porque é a química uma ciência central? ………………………….. 15

Porque é a tabela periódica importante? ………………………….. 19

Porque vem o elemento 117 preencher uma lacuna? ………. 23

Porque tem o carbono um lugar de destaque na química? 27

Porque são elementos como Fe, Mg, Ca, Na, K e Zn essenciais à vida? ……………………………………………………………… 31

Porque se usa o frigorífico para conservar os alimentos? …. 35

Porque são tão utilizados os plásticos? ……………………………… 39

Porque sentimos o cheiro de um perfume logo que abrimos o frasco? ………………………………………………………………. 43

Porque se fala em «química verde»? ………………………………….. 47

Porque se danificam algumas peças de ferro? …………………. 51

Porque são importantes as combustões? …………………………. 55

Porque se formam incrustações calcárias? ……………………….. 59

Porque funciona o ozono estratosférico como filtro solar? 63

Porque é o amoníaco uma importante matéria-prima? ……. 67

Porque é necessário purificar a água? ………………………………. 71

Porque têm os cristais de neve uma forma hexagonal? ….. 75

Porque podem rebentar as canalizações nos dias frios de inverno? ………………………………………………………………… 79

Porque é constituído por vidro o «núcleo» da fibra ótica? …. 83

Porque se faz a destilação do petróleo bruto? …………………. 87

Porque são o bioetanol, o biodiesel e o biogás possíveis soluções energéticas? …………………………………….. 91

Porque se utilizam as panelas de pressão para cozinhar os alimentos? ……………………………………………………… 95

Porque se diz em química que não há venenos, mas doses venenosas? …………………………………………………….. 99

Porque é que a salinidade do mar não se deve apenas ao cloreto de sódio? ………………………………………………………….. 103

Porque é o diamante um material com elevada dureza? …. 107

Porque é condicionada pela química da atmosfera a vida na Terra? ………………………………………………………………….. 111

Porque pode ter cor o fogo de artifício? ……………………………. 115

Porque sobe o pH da pele quando é lavada com sabão? 119

Porque existem chuvas ácidas? ………………………………………….. 123

Porque se utilizam processos de eletrólise? …………………….. 127

Porque são indesejáveis as dioxinas e os furanos? …………. 131

Porque pirilampiscam os pirilampos? …………………………………. 135

Porque se forma o «nevoeiro fotoquímico»? …………………….. 139

Porque é utilizada em medicina a radiação gama? ………….. 143

Porque se utiliza RMN em química, biologia e medicina? …. 147

Porque é o grafeno um material interessante? …………………. 151

Porque são importantes os «novos materiais»? ………………… 155

Bibliografia …………………………………………………………………………….. 159

 

Um exemplo:

Porque pirilampiscam os pirilampos?

 

Muitas reações de combustão produzem luz, decorrente da elevação da temperatura. Estas reações libertam energia como calor, suficiente para aquecer a mistura reacional até à incandescência. Em contraste, outras reações libertam energia luminosa à temperatura ambiente. A produção não térmica de luz visível por uma reação química está na origem do termo «luz fria» e o processo é chamado quimioluminescência. Para ser quimioluminescente, a reação tem de disponibilizar energia de excitação suficiente para que, pelo menos, uma espécie química possa ser transferida para um estado eletrónico excitado. Quando a produção de luz visível ocorre em organismos vivos, o processo designa-se por bioluminescência.

A bioluminescência pode ser utilizada pelos organismos como forma de camuflagem, na atração de presas ou potenciais parceiros, na repulsão de predadores, em comunicação e iluminação.

O mais conhecido dos organismos bioluminescentes é, sem dúvida, o pirilampo (do qual há vários milhares de espécies diferentes).

Numa reação bioquímica no corpo do pirilampo, a enzima luciferase catalisa a oxidação da luciferina por uma molécula de oxigénio. A decomposição térmica do produto da oxidação produz radiação eletromagnética.

A bioluminescência ocorre em vertebrados e invertebrados marinhos, bem como em microrganismos e animais terrestres. Assim, além dos pirilampos e de várias espécies de insetos, outros organismos, como bactérias, algas, celenterados e crustáceos, também manifestam a ocorrência do fenómeno de bioluminescência.

A emissão de luz por várias plantas e animais é conhecida desde os primórdios da humanidade. Contudo, apenas no século xx aumentou gradualmente a investigação nesta área, com a descoberta de muitos sistemas quimioluminescentes.

Os sistemas mais comuns envolvem o luminol, ésteres do ácido oxálico, lucigenina, tris(bipiridil)ruténio(II) ou luciferina.

 

A química das relações: pais, filhos e a escola…

Paiva, J. C, A química das relações: pais, filhos e a escola…. Revista leya-educação (on line), março, 2018.

 

Disponível em https://www.leyaeducacao.com/z_escola/i_376

A química das relações: pais, filhos e a escola…

A química, como ciência das propriedades e transformações da matéria, tem uma das suas bases fundamentais na interpretação de fenómenos macroscópicos (visíveis a olho nu) a partir do comportamento dos pequeníssimos corpúsculos que constituem todo o universo, incluindo cada um de nós. Se ainda não reparou, nós somos química em ação!

Serve o contexto químico acima para nos situarmos – a partir do fascinante mundo da química – no dinamismo daquilo que somos. As analogias da química com a vida tal e qual são impressionantes, não fosse a química a ciência das misturas. Os átomos e as moléculas ligam-se mais ou menos, desligam-se e agitam-se… e assim dançam no tempo. A química espelha, por extrapolação, as relações humanas e aquilo que nós próprios somos: forças, ligações, oposições, atrações, repulsões, transformação, reação… E se nos situarmos na complexa triangulação pais-filhos-escola temos a química no seu esplendor: mistura (às vezes explosiva…) de potencial ligante!

A gestão da distância crítica destas relações entre os encarregados de educação, os seus educandos e a realidade escolar é de grande centralidade. Assim como na química há iões complexos (partículas de carga com estruturas menos simplificadas), assim também este triângulo relacional é, no mínimo, complexo. Temos uma escola aberta e por inerência vital dessa condição que conquistámos e não queremos perder, a escola (então um sistema aberto, como muitos dos sistemas químicos) troca matéria e energia com o que a rodeia.

Talvez possamos refletir sobre a sensibilidade do sistema face ao encontro da distância crítica ótima dos seus vários agentes, por observação dos seus exageros e caricaturas, infelizmente não raros na química das nossas escolas:Há escolas, professores e sistemas educativos (inclusive políticos) que têm medo dos encarregados de educação (se estes forem professores, ainda mais…).
Há encarregados de educação que ocupam demasiado espaço no contexto escolar, protagonizando onde não é suposto e assumindo um papel de policiamento dos professores e da vida escolar, que não é nem justo nem pedagogicamente fecundo.
Há pais com distâncias críticas muito curtas face aos seus filhos e ao seu percurso escolar (umbilicalidade que adia teimosamente a desejada autonomia) e, não raras vezes, muitíssimo preocupados com o contexto académico do aproveitamento e pouco incomodados com o alinhamento ético do que mais importa na educação.
Há encarregados de educação que entendem que “é à escola que cabe educar” e se demitem das mais elementares funções, as mais radicais das quais se praticam na família.

Como em muitos dilemas educativos, casos particulares dos dilemas da vida, procuramos um justo equilíbrio entre dois polos (mais uma vez, em ponte analógica com cargas elétricas em átomos e moléculas): a) há professores que se fecham ou abrem de mais; b) há pais que se aproximam ou afastam de mais; c) há alunos que esperam ou desesperam de mais.

Há quem chame à química a “ciência dos eletrões de valência”. Isto porque nas ligações químicas, os átomos tendem a preservar o seu cerne central e partilhar os seus eletrões (livres) que, em muitos casos, por essa radical partilha, deixam de ser seus. Seria esta uma boa analogia para os pais verem os seus filhos? Serão mesmo livres os nossos descendentes? Muitas vezes, os pais entendem, no plano intelectual, que cultivam a liberdade na educação mas, na primeira oportunidade, prendem-nos em ratoeiras de expectativa, de condicionamento, de narcisismo e de projeção da sua imagem própria (digo que quero que tenhas boas notas para o teu bem mas o que me move verdadeiramente é a minha imagem de pai ou de mãe de filho com boas notas…). Outras vezes os eletrões estão de tal maneira livres (assim acontece nos metais) que são libertinos, não possuem qualquer identidade de ligação e, como tal, não podem ter o toque amoroso de serem cuidados. Tudo isto se projeta nas relações escolares dos encarregados de educação e por tudo isto compreendemos que é tão desafiante quanto enorme a obra da educação. Valha-nos o dinamismo das transformações químicas e a mais elementar humildade e abertura ao crescimento de cada um: para pais, filhos e professores, para todos, educar é educar-se!

JP in Educação Química Textos 3 Julho, 2018

Precisa-se de juventude nas salas de professores

Paiva, J. C, Precisa-se de juventude nas salas de professores, Público, 24/12/2015.

Disponível em

https://www.publico.pt/2015/12/24/sociedade/noticia/precisase-de-juventude-nas-salas-de-professores-1718327

 

 

1. O recém-empossado ministro da Educação é uma pessoa jovem. Trabalhando com formação de professores, tenho verificado, cada vez mais, um deserto de professores jovens. Neste momento em todas as universidades portuguesas não se estarão a formar mais de meia dúzia de estudantes como futuros professores de ciências físico-químicas. Noutras áreas é quase a mesma coisa. Um conjunto significativo de docentes com cerca de 60 anos aposentou-se recentemente, tendo o grosso dos profissionais entre os 45 e os 55 anos. Entrar numa sala de professores de qualquer escola básica e secundária, principalmente nas grandes cidades, suscita-nos preocupação: faltam jovens!

2. A expectativa do decréscimo demográfico no nosso país agudiza este problema. A contabilidade dos alunos por turma com base nos nascimentos dramatizam a situação. O Estado deveria cumprir o seu papel de superar os imperativos dos dados da demografia e as balizas do mercado de trabalho. É em nome do futuro do país e da indiscutível relação entre a educação e o desenvolvimento que o Estado deve antecipar e prevenir uma situação que, deixada ao sabor da actual natalidade e da pressão laboral, conduzirá a salas de professores desertas. Quem está na formação de professores já compreendeu o óbvio: como aconteceu na Inglaterra e noutros países, que tiveram antes de nós um excesso de docentes e agora os importam, faltarão professores no sistema dentro de alguns anos.

3. Mas não é só a falta de professores no futuro que me preocupa. Entretanto verifica-se um hiato geracional e os professores mais antigos não podem transmitir a sua experiência aos jovens professores. Perdem todos. Os professores mais jovens, porque não contactam e não herdam dos seus pares mais velhos a sabedoria profissional. A fruta amadurece melhor junto de outra fruta. Os professores mais velhos, por seu lado, não veem rejuvenescidas as suas práticas letivas e não letivas com novas metodologias e novos entusiasmos. E os alunos, que, com o vazio de uma geração mais próxima da sua, perdem oportunidades de diálogos mais próximos e actualizados.

4. Alinho algumas ideias que podem ajudar a minimizar os danos do envelhecimento do corpo docente. Concentro-me nos ensinos básico e secundário e deixo de fora o ensino superior, que é palco do mesmo problema mas cujo caminho passa pela urgente contratação de mais jovens para as nossas universidades e politécnicos.

a) Incentivar decisivamente o trabalho parcial. Por cada professor com mais de 50 anos que trabalhe a meio tempo ou de outra forma parcial, pode libertar-se quase um horário para um outro professor. Uma das possibilidades objetivas será ampliar a alternativa penalizante da Lei nº 7/2009 de 12 de fevereiro e aproximá-la do permitido pela Lei n.º 84/2015 de 7 de agosto, independentemente da existência de filhos ou netos menores. Dessa forma não se compromete a contagem total do tempo de serviço.
b) Garantir, isto é, não fechar e até sobrefinanciar, se necessário, um número mínimo de cursos de mestrado de formação de professores, nas diversas áreas e zonas do país, com um planeamento eficaz,
independentemente da pressão atual de empregabilidade.

c) Afetação voluntária dos docentes mais velhos a funções de gestão e coordenação, com libertação de horários para jovens professores. À semelhança do que acontece em vários países desenvolvidos, a estes professores mais antigos poderiam ser dadas missões de coordenação de projetos, participação em comissões de inovação, formação docente, acompanhamento de casos difíceis e complexos na escola, etc.

d) No caso das ciências exatas, a ampliação da componente laboratorial e a redignificação do 12.º ano, que tem sido esquecida (a Física e a Química não são obrigatórias para quem vai seguir Ciências ou Engenharia), poderiam conduzir, também, à necessidade de mais horários, onde mais professores jovens, recém formados e com particular robustez, ajudariam.

e) Incentivar projetos de natureza camarária, estatal ou outra para atividades pedagógicas complementares, onde estejam envolvidos jovens professores.

f) Promover de alguma forma, dentro dos limites legais, que sejam favorecidos professores mais jovens em concursos docentes.

5. Se nada for feito, haverá também um desvio colateral nefasto que nos pode custar muito caro: atuais alunos do ensino secundário e superior, com vocação e gosto pela profissão de professor,
poderão ser desencorajados a seguir a via educacional, com medo do vazio de mercado. Este desperdício vocacional pode deixar sem rumo a escola de amanhã. Arriscamo-nos a ter no futuro, quando a necessidade for premente, gente medíocre que se abeira da profissão docente, sem qualquer gosto e inclinação. Tal aconteceu no final do século XX em Portugal, quando foi preciso ter muitos professores para haver ensino para todos.

6. É certo que um ministro da Educação, por mais jovem que seja, sabe que tem diante de si uma das pastas mais difíceis de gerir. É complexa porque praticamente toda a população, de forma direta ou indireta, se interessa e não resiste a intervir, ora de mais ora de menos. É sistémica porque tudo está fortemente ligado. Mexer aqui significa perturbar acolá. É também por isto que, na política em geral e na gestão educativa em particular, será aconselhável que um ministro da Educação faça poucas alterações, mas cirúrgicas e sustentáveis, apontando sempre para o futuro. Mesmo reconhecendo alguns assuntos modificáveis e reajustáveis, será benéfico contar até dez (ou vinte…) antes de entrar nas múltiplas intervenções, reformas e contrarreformas, que deixam o sistema pouco estável e alunos, professores e encarregados de educação cansados de alterações. Nesta escolha de prioridades para a educação, oxalá que poucas, pequenas e possíveis, espero que o novo ministro empreenda o rejuvenescimento do corpo docente. Nada na educação será tão urgente para o presente e nada será tão promissor para o futuro.

Professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

jpaiva@fc.up.pt

 

“Não precisamos de formar mais professores”: uma falácia na opinião pública que compromete a visão para o futuro. Jornal Público

Paiva, Morais e Moreira (2018).“Não precisamos de formar mais professores”: uma falácia na opinião pública que compromete a visão para o futuro. Jornal Público (26-06-2018).

 

Disponível no Jornal Público em

https://www.publico.pt/2018/06/26/sociedade/opiniao/nao-precisamos-de-formar-mais-professores-uma-falacia-na-opiniao-publica-que-compromete-a-visao-para-o-futuro-1833279

 

“Não precisamos de formar mais professores”: uma falácia na opinião pública que compromete a visão para o futuro

 

João Paiva, Carla Morais e Luciano Moreira – Universidade do Porto

 

 

O problema do (não) rejuvenescimento dos professores portugueses tem merecido reflexão* e debate, mas notam-se dificuldades na ação, principalmente no plano político e governamental. Tais constrangimentos existem, precisamente, porque, para muitos, parece que estamos a falar de um problema com contornos aparentemente insignificantes e inconsequentes, quando, na verdade, se trata de um problema absolutamente determinante para o presente e para o futuro do nosso sistema educativo. Mas são as questões estratégicas, que envolvem um horizonte a médio e longo prazo, as mais importantes; as que convocam o Estado na sua missão de garantir a sustentabilidade do desenvolvimento, do legado intergeracional e, acima de tudo, a necessária e urgente visão realista e factual no que respeita à formação de professores em Portugal.

 

Para além dos horizontes eleitoralistas, a ação política, isto é, a capacidade de propor causas e estabelecer prioridades, é afetada pela opinião pública. As ideias feitas e os argumentos infundados propagados na comunicação social não são mera espuma dos dias. Pelo contrário, contribuem para condicionar projetos políticos estruturantes. O hoje, agora e já são tratados sem ter em conta o amanhã, depois e adiante. Tal acontece, na nossa ótica, na notícia vinda a público no jornal Expresso: “Professores: uma profissão sem renovação à vista”**.

 

Vejamos em chave crítica, tendo como pano de fundo a realidade que melhor conhecemos, respeitante aos professores de Físico-Química (adiante FQ: notar que a referida notícia apresenta apenas os dados gerais e não discrimina por áreas de formação e atuação profissional; a nós interessa-nos especialmente a situação dos professores FQ, que é retratada no estudo original***). Anotamos algumas incorreções, imprecisões e dúvidas, que nos suscitam reflexão:

 

  1. A notícia refere que em Portugal se formam anualmente 1500 professores. No documento original, não encontramos estes dados referidos. Independentemente da correção do valor geral, o panorama em FQ é bastante diferente. Atualmente, em Portugal, apenas a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e o Instituto de Educação da Universidade de Lisboa em conjunto com a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa formam professores de FQ. O número nos últimos anos tem sido pouco expressivo. Anualmente, temos menos de uma dezena de professores formados em FQ, por ano, em Portugal.
  2. A notícia cita corretamente o estudo no que diz respeito ao rácio professor/aluno, situando-o em 10. Este rácio é comparado com os de outros países sem que seja clara a legitimidade da comparação. Tratando-se de um rácio geral (isto é, N alunos/N professores) não retrata fielmente a realidade nas escolas portuguesas. Isto torna-se evidente no caso de FQ em que o rácio é de 129 (menos elevado na realidade, considerando que nem todos os alunos escolhem a disciplina no secundário). Além disso, um eventual aumento do rácio não se traduzirá necessariamente num agravamento das condições para a maioria dos professores. Poderá muito bem incidir nas disciplinas com menos procura. Ou seja, há muitos modos de ajustar o rácio e será mesmo discutível se este deveria ser o indicador a usar.
  3. A notícia enfatiza que haverá “muito menos” entradas de professores (13 000) em comparação com a saída (30 000). Dito de outro modo, há mais de dez professores que entram para cada 30 que saem. Esta observação deve ser enquadrada com a diminuição da procura de cursos de formação de professores (nomeadamente, em FQ).
  4. Registam-se ainda imprecisões e nuances semânticas, que, em conjunto, concorrem para um tom de urgência e dramatismo associado à não apetecibilidade da profissão docente junto da opinião pública:
  5. i) Em lugar de uma perda, fruto da natalidade, de “quase menos 160 000” alunos, o estudo original aponta para exatamente 150 000 alunos.
  6. ii) Inversamente, em lugar de um universo previsível de “57 000 professores” no ativo em 2030, o estudo refere “pouco mais de 57 000”.

iii) Tanto no artigo como no estudo original, o eixo das ordenadas de vários gráficos não tem início no zero (0), dando, assim, uma impressão distorcida e exagerada, por exemplo, das saídas de professores e perda demográfica de alunos que se situa, grosso modo, em ⅕ ou dito de outro modo uma perda de dois em cada dez alunos.

 

Há uma subtileza que se prende com a oportunidade e o timing deste artigo: anuncia-se um boom de contratações até 2020 que coincide aproximadamente com o ciclo político atual. Uma outra política de contratação poderia permitir a insuflação de ar fresco de forma faseada, minimizando o vazio de contratações antecipado de forma alarmada e intencional para o quinquénio seguinte.

 

Um dos pressupostos adicionais é o de que todos os professores formados deveriam ter lugar nas escolas. Ora, o emprego a 100% dá-se apenas num conjunto restrito de profissões e é sempre explicável por razões conjunturais. Assim, não se entende a razão porque se tem feito disto bandeira no caso dos professores.

Finalmente, há numerosos professores que exercem cargos administrativos. Não sabemos qual a percentagem, natureza, muito menos a adequação proporcional à exigência das funções e consequente menor disponibilidade para a componente lectiva.

 

No caso específico dos professores de FQ, facilmente se compreende que será necessário que o Estado continue a garantir a sua formação, numa proporção que uma boa análise sócio-estatística, com pouco risco, pode indicar. Tal imperativo não resulta só do fundamental rejuvenescimento do corpo docente. É também crucial, mesmo tendo em conta as baixas demográficas previsíveis, para garantir o não vazio de profissionais na área.

 

Adivinha-se algum paralelismo e situação convergente com outros grupos disciplinares que não FQ, como a Matemática, a Biologia/Geologia ou mesmo as Humanidades.

 

O estudo referido na notícia é importante e precisa de ser analisado com o detalhe e especificidade que merece qualquer interpretação, sem habilidade estatística: há que não uniformizar o que não pode ser generalizado. Por outro lado, na sua extração mais ampla, pode e oxalá induza os decisores políticos para um olhar mais profundo e promissor. De outra forma, este estudo e principalmente as notícias que o embrulhem com extrações simplistas, acabará por ser usado como uma meia verdade que, como a vida nos ensina, é a seiva da inação, suportando a ausência de estratégia educativa de futuro..

 

A opinião pública tem também um papel importante no grau de benignidade ou toxicidade que pode adicionar à profissão docente. Ser professor é das mais nobres missões e das mais fascinantes atividades profissionais. Somar à fragilidade conjuntural que afeta o prestígio docente a ideia de que não haverá futuro profissional pode eliminar o ser professor das escolhas vocacionais dos nossos melhores jovens e, assim, ampliar o deserto da qualidade dos professores que são, sem demagogia, um dos elementos fundamentais da promoção da educação. Não há melhor garantia para um povo do que a melhor educação e, sem apostar de forma sistemática e estratégica na formação inicial de professores, não haverá o amanhã que se deseja na escola.

 

 

 

 

*https://www.publico.pt/2015/12/24/sociedade/noticia/precisase-de-juventude-nas-salas-de-professores-1718327

**http://expresso.sapo.pt/sociedade/2017-12-12-Candidatos-a-professor-quase-sem-emprego-a-partir-de-2020

***http://www.cnedu.pt/content/edicoes/estado_da_educacao/CNE-EE2016_web_final.pdf (pp. 348-357)