guerra e covid

A crise pandémica covid19 parece-me estar para a atual guerra como uma formiga para um elefante, no que diz respeito à (des)organização do mundo. Ambos os desafios nos desinstalam e para ambos há custos e preços como sombras, onde só o amor pode trazer luz…

JP in Sem categoria 28 Abril, 2022

Da invasão da Ucrânia: recados a mim mesmo…

Paiva, J. C. (2022). Da invasão da Ucrânia: recados a mim mesmo… Site Ponto SJ, 21-03-2022.

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Como muitos de nós, dei comigo absolutamente tomado pelos últimos acontecimentos na Ucrânia, na Europa, no mundo, em todos e em cada um de nós. Embora meio em choque, a quente, refleti e escrevi sobre o que me pareceu mais relevante na tensão entre a guerra e a esperança. Volvidas algumas semanas sobre a invasão, verto em escrita partilhada alguns recados a mim mesmo:

Informado mas recolhido
Cheguei a estar horas a fio preso à televisão. Foi uma reação natural mas cuja desintoxicação, ainda em curso, carece do meu trabalho. Hoje em dia, com resistência interior, imponho-me não ler mais do que alguns artigos de jornal por dia e tomar apenas um dos telejornais. Em chave autocrítica, o que eu perdi nos primeiros tempos foi a qualidade do tempo de recato e oração. Cheguei a quebrar alguns rituais de paragem e noto bem o preço que paguei, eu e alguns outros, que me suportaram mais hiperativo, mas ao mesmo tempo cansado, tenso, irritado e com menos rumo. Interpreto com naturalidade este desnorte: eu já sabia que a existência era contingente, que a crueldade pontuava, que nada era garantido, que a liberdade projetada na fé de Deus em nós tinha um preço. Mas aqui, tudo isto, que aparece em pequenas doses na nossa vida, está em formato do shot. Absorvido este excesso, sinto um apelo a uma qualquer pós-ressaca. Não tenho neste momento a meu cargo sistemático crianças e jovens em processo educativo. Sei bem, porém, a criatividade e a atenção que, nesta tensão entre a informação que traz a verdade incontornável e a moderação, há um desafiante discernimento.

Atuante mas contemplativo
Com uma razoável impulsividade, que certamente inclui bondade, mas que terá o seu quê de mecanismo de fuga e inquietação, envolvi-me com outras pessoas na mobilização de redes solidárias para o acolhimento de refugiados ucranianos. Compreendo-me a esta distância, mas sublinho a fragilidade maior neste caminho: não raras vezes, perdi a noção da positividade e do sentido. Tomado por certa urgência, real ou antecipada, o que me faltou e desejo retomar com mais força, é esse olhar que não prescinde do belo. E o horizonte contemplativo é parte não descartável, como aponta a metáfora evangélica de Marta e Maria. O fazedismo sempre foi tentação minha e notei-o exacerbado estes dias…

Generoso mas prudente
No contexto nacional, o processo de acolhimento de migrantes ucranianos é um misto generosidade, voluntarismo, emoção, eficácia, improviso, planeamento, racionalidade, ingenuidade, ação, coração, etc. À medida que o tempo passa, a tendência é para moderar e amparar os caminhos, tentando conferir sustentabilidade aos processos de acolhimento. Ao gesto generoso se deve somar o amparo jurídico, a tentativa de dar lastro institucional, o olhar e a concretude que dão futuro ao gesto de acolher. E tudo isto pede algum tempo. Nem sempre estive munido deste equilíbrio. Quando a emoção avulsa e certa pressa tomou conta das ocorrências, o processo fragilizou. Ir buscar gente à fronteira da Ucrânia sem contexto institucional, legal e sem avaliar as condições para o respetivo acolhimento, é o exemplo típico de alguma imprudência. Do ponto de vista pessoal será inspirador, nas ofertas de bens e vontades, contar armas, metáfora irónica neste contexto… Não convém também, como me aconteceu bastas vezes, alimentar autopressões mais ou menos morais, sobre o pouco que faço: a caridade, como a nossa fé, é sempre pequena… e há que conviver bem com isso. Quem se mete nestas coisas da solidariedade sabe que as surpresas acontecem, que a expetativa deve ser gerida (e principalmente baixada, até zero, no melhor dos sentidos). Por vezes, diante de joio que vinha no meio do trigo, cheguei a pensar “onde eu me meti, mais valia ter ficado no sofá”. É tentação pura, e o caminho, quando algo corre menos bem, é dar melhor e não deixar de dar.

Comunicante mas contido
Notei-me muito falador e pouco escutante. Em qualquer conversa, emito… e falo sobre a guerra. Digo-me otimista mas muito preocupado. Especulo, filosofo (baratamente…), adivinho futuros. Medos… Este é um dos aspetos que existia antes da guerra: sou um dos distraídos que despreza o ouvido em favor da boca. Recomendo a mim mesmo, principalmente agora, mais silêncio e mais escuta. E se gosto de falar (porque gosto), pois que espere pelas perguntas dos outros. Meu jejum mais preciso é o da palavra.

Colhido pelo facto mas aberto ao quotidiano
Perante o compreensível mergulho na realidade que nos engole, é muito importante ir retomando alguns gestos. Sem tal significar distração ou anestesia, a vida continua e isso é uma das respostas à brutalidade deste tempo. Abandonei durante três semanas o cuidado da horta e a remoção das daninhas de hoje fez-me refletir com algum sentido autocrítico. A natureza ensina…

Realista mas esperançado
Há desafios neste cenário, nos planos das ideias e da ação, que são duma complexidade extrema. Quando analogicamente penso num matulão numa escola em bulling violento ativo, e na forma como eu, se pudesse, o travaria (usando força, bem entendido), fico partido diante da convicção de não responder à guerra com a guerra e, ao mesmo tempo, sensível ao justo pragmatismo de uma paz mundial (ainda) armada. O que fui vivendo nestes tempos, em dança de moções, levou-me variadas vezes aquilo a que poderia chamar recomeços amorosos. Recordo com inspiração as máximas de Santa Teresa (mais contemplativa) ou de Teresa de Calcutá (mais ativa, mas mística nos seus desertos), sempre apontando para a grande pequenez do amor. Nas guerras maiores, o elixir é o mesmo das guerras menores: salvar-me-á sempre, a mim e a todos, o amor que falta. O amor que somos chamados a derramar no espaço e no tempo, também e principalmente neste instante incerto.

JP in Sem categoria 30 Março, 2022

Hoje só posso escrever sobre a guerra e a esperança…

Paiva, J. C. (2022). Hoje só posso escrever sobre a guerra e a esperança… Site Ponto SJ, 28-02-2022.

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Tinha, em versão preliminar, um conjunto de reflexões escritas para o ponto sj, mas são agora minudências eclesiais… Vão ficar para mais tarde, até porque poderão mudar de sentido.

Os desafios em cima da mesa são muitos, novos e enormes. Mesmo no cenário mais otimista de desfecho rápido da invasão e do fim da guerra, o mundo, a Europa, o nosso país, a Igreja e todos nós estaremos diante de uma nova realidade, que vai pedir novas perguntas e novas e exigentes respostas.

É verdade que para alguns de nós, o sempre novo e a sempre nova resposta é o Evangelho. A fragilidade aguda, a crueldade humana no seu expoente maior, a dor, o desespero e a morte, terão sempre, em chave cristã, um paradoxal apontamento para a esperança e para a essencialidade do Amor. Porém, sucederam-me, depois de uma espécie de congelamento atónito naquele (futuramente histórico) dia de 24 de fevereiro de 2022, alguns apontamentos não sistemáticos, que partilho despretenciosamente:

1 – O mundo vai mudar muito

É inevitável. Se amanhã o exército russo recuar ou houver uma degradação interna da Rússia (a minha esperança maior, apesar de tudo, quiçá alavancada pelas Mães dos soldados…), o mundo já não é nem ficará o que era. É preciso que Put(-)in (não se escamoteie a sua crucial responsabilidade) seja put-out e ninguém sabe como tal vai acontecer. O primado da desconfiança prudente entre os povos ganhará novos contornos e um novo ciclo histórico, de consequências imprevisíveis, acontecerá. A leitura do passado e até as intuições do presente, remetem-nos para lições que se retiram dos conflitos, mas o balanço da guerra, sejamos realistas, será sempre negativo e brutal. Se somos cada vez mais, em todo o lugar e em todo o momento, cidadãos ligados e em comunicação, então a mudança geopolítica será uma mudança também em cada comunidade e em cada pessoa. Os ciclos da história apontam-nos para uma ainda maior fragilização dos mais frágeis, assim como com a pandemia, mormente ainda com a guerra.

2 – Quanto mais lento o fim da guerra, mais prejuízo sócio-económico

Já se adivinham as consequências desta guerra no plano económico-social. Os efeitos boomerang das sanções económicas e o elevado custo da energia vão fazer disparar preços e tornar os pobres mais pobres. Há ainda um impacto indireto, de médio longo prazo, que me parece incontornável: haverá algum sentido crítico sobre o gasto dos estados mais desenvolvidos nos dinamismos de proteção social, em comparação com outras dimensões, como a da segurança. Do ponto de vista político, será muito provável assistir a deslocação de verbas de pensões sociais e outras rubricas de promoção humanista para segurança e defesa. Quanto mais tempo durar a guerra, mais estas tendências se intensificam. Não sendo nem óbvio nem desejável, o envolvimento bélico de países da NATO traria esta preocupação para escalas absolutamente desesperantes.

3 – A solidariedade sustentável como caminho

A solidariedade, desde logo por mandato evangélico, mas de convocatória generalista e humanista, vai tornar-se ainda mais urgente. Esta é uma oportunidade de fraternidade que funciona como avesso do hiperconflito à escala global. Convirá somar à positiva emocionalidade do espírito de compaixão e partilha uma efetiva sustentabilidade, racionalidade e operacionalidade do que vai importar empreender. A sociedade civil, o estado e as forças regionais deverão harmonizar-se e apostar na planificação inteligente de todas estas novas demandas. Passarão numa primeira instância pelo acolhimento dos cidadãos ucranianos que nos chegarem (esteve irrepreensível, a este propósito, o primeiro-ministro de Portugal – não levou o meu voto nas últimas eleições, mas leva sem hesitação um rasgado elogio na sua ação e intervenção nesta crise). Mas rapidamente a malha de acolhimento dos mais desfavorecidos vai ser convocada para todos os cidadãos – que serão mais – em fragilidade social. A Igreja e as instituições a ela ligadas, com enraizada e efetiva ação a este nível em Portugal, serão convocadas a fazer ainda mais e melhor.

4 – Novos olhares sobre a segurança

Há uns tempos manifestei a alguém uma opinião muito pessoal, mais ou menos nestes termos: “eu, que fiz a tropa e não a acho tão má como a pintam, via com bons olhos o serviço militar (ou cívico) obrigatório em Portugal. A minha motivação prende-se com certa educação social para a privação, a obediência e o sentido de pertença comum das novas gerações. Mas sei que não há condições eleitorais para propor isso”. Pois muito bem, retiro o que disse na última parte. Antevejo nova revalorização de toda a relevância militar que espero, agora, não se torne também excessiva e desproporcionada, como se de um 8 para 80 se pudesse tratar…

Há uma importante reflexão a (re)fazer sobre a designada “guerra justa”, triangularizadora da política, da justiça e das religiões. Já estava na ordem do dia, mas poderá ganhar mais valor.

5 – Algumas oportunidades para a valorização do lado espiritual da vida humana

Somos seres espirituais, independentemente da manifestação religiosa de cada um e de cada povo. A fragilidade humana, mais privada ou mais coletiva, convoca sempre esta dimensão, reduto de interioridade, de refúgio, de encontro e de sentido. As religiões, por outro lado, poderão ser reconvocadas para (ainda mais) protagonismos de diálogo e de paz. A ida do Papa Francisco ao embaixador da Rússia em Roma (em vez de o mandar chamar, como é prática diplomática), no seu pé titubeante, é, por si só, um gesto de paz, pleno de simbolismo e sentido.

É límpido, também hoje e principalmente hoje, que só o amor é a resposta. Nesta circunstância, qualquer um de nós tenderá a sacudir os seus lados mais fúteis. Sem relevar o impacto brutal, aos mais variados níveis, daquilo que está a acontecer, particularmente para os atores da guerra no terreno, sejam ucranianos ou russos, situamo-nos diante da fragilidade aguda e da morte. Como a vida nos foi ensinando, face a outras (mais pequenas) mortes: não há alternativa existencial a viver acreditando e a acreditar vivendo que o sofrimento não é a última palavra. A nossa resposta, a nossa oração, a nossa vida (que continua…), a nossa ação, serão, hoje como ontem e amanhã, as mesmas de outras guerras. Para onde iremos, Senhor do amor, se só tu tens palavras de vida?…

JP in Sem categoria 2 Março, 2022