a virgem ficará grávida e dará a luz um filho que se há-de chamar Emanuel

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mt 1, 18-24

«Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta: “A virgem ficara grávida e dará a luz um filho que se há-de chamar Emanuel»

Em vésperas de Natal, A leitura do Evangelho fala-nos do sublinhado da encarnação. Com a respetiva herança judaica (“tudo isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta”), queremos festejar o extraordinário de um Deus que se faz Homem, cerne do cristianismo. A teologia e a dogmática da virgindade de Maria é bastante dinâmica e está sempre afetada pela tensão entre a fisicalidade e a simbolocidade dos acontecimentos. Para a vida de que cada um de nós e de todos, importará significar este Deus que quis e quer estar na humanidade de criou e cria. É coisa de tal forma ímpar e original, este querer estar connosco, que o seu nome é e será, precisamente, Emanuel (Deus connosco).

DOMINGO IV DO ADVENTO


L1: Is 7, 10-14; Sal 23 (24), 1-2. 3-4ab. 5-6
L2: Rom 1, 1-7
Ev: Mt 1, 18-24

JP in Sem categoria 18 Dezembro, 2022

louvarei o Senhor toda a minha vida

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Slm 145

Louvarei o Senhor toda a minha vida

Louvar é bem dizer e pode ser um bom respiro. Fixemo-nos na expressão final do verso do salmo, isto é: “toda a minha vida”. A sociedade (não só hoje mas desde sempre), como a própria contingência do homem, é muito virada para o provisório. A nossa felicidade, por outro lado, tem muito a ver com uma certa esperança e confiança no futuro. Sem deixar escapar o presente (antes potenciando o “já”), vale a pena viver, se a nossa vida for uma vida com futuro! Louvar o Senhor, hoje, é bom. Melhor ainda, expressão de fidelidade libertadora, é louvar o Senhor, hoje, querendo também louvá-Lo “toda a minha vida”. Ser feliz, não só pelas (tantas) coisas boas que tenho hoje, materiais e espirituais, mas, principalmente, porque a fé me dá a graça de saber que serei feliz amanhã, aconteça o que acontecer…Esta confiança no futuro alimenta uma espera saudável…

NOTA: Este texto é repetido/ajustado a partir de evento já publicado anteriormente, neste blog

DOMINGO III DO ADVENTO



L1: Is 35, 1-6a. 10; Sal 145 (146), 7. 8-9a. 9bc-10
L2: Tg 5, 7-10
Ev: Mt 11, 2-11

JP in Sem categoria 10 Dezembro, 2022

Vamos falar então de morte, da minha morte…

Paiva, J. C. (2022). Vamos falar então de morte, da minha morte… Site Ponto SJ, 25-11-2022.

Disponível aqui

Decidi começar a preencher o meu testamento vital a partir dum ficheiro disponível na Internet intitulado “Diretiva Antecipada de Vontade (DAV)”. Harmonizei pontos de vista com alguns amigos, principalmente médicos e fiz um balanço muito positivo no que tal trouxe ao meu crescimento pessoal, vivencial e espiritual. Intuo também que tal possa vir a ajudar os meus familiares e o corpo médico quando e se, no futuro, me encontrar em situação de grande fragilidade de saúde. Hoje escrevo estas palavras dum certo lugar de mim e do mundo. Um dia poderei ajustar a posição ou até mudar de ideias. Felizmente, a própria DAV é radicalmente reversível e flexível. Estou consciente da (pseudo)frieza com que tento argumentar a minha decisão de avançar com a DAV. Sei de antemão que faço o exercício de clarificar e simplificar aquilo que é bastante complexo. São imensas as nuances: pessoais, psicológicas, relacionais, jurídicas, espirituais, morais e médicas. No plano clínico, em particular, cada caso é um caso, mas estou convicto de que pensar antes, só poderá ajudar. Algumas linhas de força:

A morte ainda é tabu, mesmo nas famílias cristãs
A morte continua a ser um razoável tabu. Compreendemos todos porquê: é algo real mas angustiante, evidente mas que desejaríamos omitir, distante… mas iminente. Somos morrentes em trânsito, estamos a nascer e a morrer ao mesmo tempo, mas tendemos a ver parcialmente esse dinamismo. Morrer parece quebrar a unidade, mas se há que ligar alguma coisa na nossa existência, é precisamente a vida e a morte. Para nós, cristãos, a morte e a ressurreição de Jesus são uma misteriosa síntese inspiradora. Se alguém ensaiar falar sobre a morte e sobre a sua morte em família – até com alguma solenidade e convocatória, como, quanto a mim, conviria – ouvirá com alguma probabilidade coisas como “não vamos falar de coisas tristes”, ou “deixa lá isso” ou desvios mais irónicos do tipo “hoje está um lindo dia”. Compreende-se, mas pode ser o caso de insistir. Se o mandato humano nos evidencia a evidência da morte, o lastro cristão convida-nos adicionalmente a encarar e a falar do assunto, focados na esperança confiante do que professamos: a morte não é a última palavra. Mais ainda, não me parece que seja só assunto de gente de mais avançada idade: é coisa para todos, novos e menos novos. A fenda preventiva que se abre nesta reflexão agudiza ainda mais o argumento de falar do assunto, de ir falando, e quanto mais cedo melhor.

É sempre mais fácil mastigar e prever sobre a minha liberdade do que sobre a liberdade dos outros  
Os argumentos jurídicos, políticos, morais, sociais e teológicos relacionados com a eutanásia (que de alguma forma, assumidamente, não quero operacionalizar aqui), apresentam-nos uma tensão incontornável à volta da liberdade: a minha liberdade, a liberdade dos outros e a liberdade do mundo. Torna-se por isso redobradamente interessante o contexto da DAV, porque permite deliberar sobre a minha própria liberdade, antecipadamente, e não sobre a liberdade do outro, seja pai, mãe, irmão, amigo. O que se expressa no formulário é radicalmente pessoal (embora possa incluir procuração a um terceiro de confiança). A minha simpatia pela DAV, enquanto cidadão, é a sua universalidade e o seu potencial de fecundidade, já hoje (pela conversa que abre) e amanhã, pela paz e ecologia adicionais a que pode conduzir.

A tese minimalista dos cuidados médicos que para mim desejo: as minhas motivações
Para já, tenho certo bloqueio filosófico-deontológico-moral em relação ao gesto explícito de induzir o fim (apesar da minha compreensão por colocações diferentes da minha). Mas, daqui partindo, registo:

a) Uma cosmovisão sociologicamente benévola da morte enquanto sustentação demográfica: dar lugar a um outro num planeta de recursos limitados: a morte que permite o nascimento de outras vidas e, portanto, como doação.
b) Um embalo nas potencialidades médico-farmacológicas da medicina paliativa. Dentro da medicina paliativa, ela mesma ainda embrionária e com graves lacunas no nosso país, destaca-se a paliatividade doméstica. A possibilidade do doente poder ser assistido em sua casa ou num dinamismo ambulatório é altamente promissora.
c) Uma grande simpatia pela ecologia médica. Ao declarar querer ser minimalista na situação de fragilidade aguda, liberto recursos de assistência (médicos e não só), físicos e humanos, para que outras necessidades possam ser satisfeitas. Note-se como esta motivação c) – ecologia de recursos médicos – é muito mais fácil de enunciar e reclamar a título individual. Ser-me-ia difícil invocar o mesmo para outrém… Mas médicos, gestores de medicina e sociedade, já hoje e mais ainda adiante, poderão ter que realizar complexos discernimentos sobre ecologia médica e tensões de prolongamento em fim de vida.
d) Finalmente, mas o mais relevante para mim, é aquilo a que eu poderia chamar um lastro espiritual ou uma motivação mística. A cristandade (termo que aqui escrevo com ironia crítica) tem vindo a esquecer a dimensão mística, que, contudo, é a mais importante neste contexto, que salva e que salvará. O encontro com “um qualquer” coisa transcendente a que chamamos Deus, e que pode nortear a nossa vida, seria suficiente para uma desdramatização da morte. São Francisco sintetiza este aspeto ao referir a “irmã morte”. Deste lado místico, facilmente damos suporte à ideia de que valorizar a vida não é ter apego à vida… Quase ao contrário, valorizar a vida é dar a vida, em todos as suas etapas e também nos momentos mais perto de outras passagens. É ainda a faceta mística que mais amplia o ponto de partida que interessa para o próprio desapego da vida: que tal liberdade de largar venha, não do medo, mas do amor.

Um pouco além da DAV
No formulário da DAV são colocadas as diferentes situações clínicas para as quais o documento produz os seus efeitos. A saber:  a) Me ter sido diagnosticada doença incurável em fase terminal; b) não existirem expectativas de recuperação na avaliação clínica feita pelos membros da equipa médica responsável pelos cuidados, de acordo com o estado da arte; c) quando me encontrar incapaz para expressar a minha vontade autonomamente, em consequência do meu estado de saúde física e/ou mental, e se verificarem uma ou mais das seguintes hipóteses: Inconsciência por doença neurológica ou psiquiátrica irreversível, complicada por intercorrência respiratória, renal ou cardíaca.

Selecionei todas estas opções acima, mas, no meu caso particular, pelos motivos expostos no início desta reflexão, quis “esticar” ainda mais ainda a situação (ir um tanto além do texto da DAV) e, como quarta opção, em “outras”, somei a seguinte redação, com as palavras bem medidas: “em situação de fragilidade aguda de origem psico-neurológica ou outra, particularmente sinalizada pelo quase sistemático não reconhecimento dos outros, declaro preferir entrar em metáfora paliativa”. Além disso, para se perceber o cenário filosófico-existencial do meu perfil, poderia somar na página 3 do documento, em “outras considerações”, este próprio artigo.

Sei bem que é bastante vaga a declaração de preferir entrar em metáfora paliativa. É fundamental a integração sistémica da equipa médica. Deste lado da minha ignorância clínica, o que quero dizer é que numa infeção, por exemplo, em vez de me prescreverem antibióticos de largo espectro, entendo como preferível o conforto e o alívio da dor, mesmo que recorrendo a antibióticos mais comuns (funcionando paliativamente) e/ou a fármacos morfinóides, com as suas consequências.

Algumas pessoas contestam este pragmatismo com a ideia de que “poderá, entretanto, aparecer um tratamento… ou até um milagre”. Confesso que não me comovo muito com essa argumentação. Sim, é verdade que estatisticamente haveria essa possibilidade, mas a vida ensina-nos que não há risco zero em coisa nenhuma. Há um lado do “agarrar a vida” que, na minha ótica, sombreia a vida que importa, onde caberá, por amor, deixar ir… A entrega amorosa é uma das dimensões da dança entre a vida e a morte.

Notar que pode haver legítimos obstáculos filosóficos e bioéticos à utilidade da própria DAV. Dir-se-ia que o dinamismo médico verdadeiramente bioético prescinde deste instrumento. Posso concordar parcialmente, mas a prática médica e o contexto socio-afetivo dos pacientes e das suas famílias parece-me estar longe dessa idealidade. É por reconhecer que estamos em processo, porventura em primeiros passos, longe da velocidade de cruzeiro paliativa, que, pelo menos provisoriamente, para cada um, para cada família, para cada ambiente clínico, podemos ganhar globalmente com a tentativa de explicitar antecipadamente a nossa vontade ou, pelo menos, o nosso “estilo bioético” face à iminência da morte.

É para a vida que somos feitos 
O que aqui escrevo brota dum entrançado complexo, que contempla atrevimento, medo, ousadia, racionalidade, fragilidade, dúvida, convicção, pragmatismo, afetividade, ignorância, vontade, sonho e liberdade. É o meu ponto de vista, a minha possibilidade, hoje e aqui, neste lugar.  Sei bem que apesar das minhas colocações, a dúvida persiste (em mim e em quem eventualmente me cuidará adiante). O meu ponto é mais frágil do que as próprias palavras (alguma similitude com excessiva segurança é pura coincidência). A tentativa de racionalizar, prevenir, operacionalizar e facilitar só valerá se vier e for para o amor. Importará, em todos os cenários, amanhã e desde já, alimentar a esperança e o sentido para uma vida boa, minha e de todos. Por isso mesmo, também para uma morte boa, tanto quanto possível. O físico conta, pois, nele nos movemos e (co)movemos, mas parece ser radicalmente insuficiente. Para mim, a DAV serve se servir uma metafísica mais brotante de sentido e de sentidos: a de que nascemos para viver e viver em abundância. Há pouca vida sem a esperança de que o seu avesso, a morte, seja uma passagem para mais vida. Eis a nossa fé: para a vida nascemos e é sempre a vida que manda, até na morte!

JP in Sem categoria 6 Dezembro, 2022

Uma voz clama no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Mt 3, 1-12

«Uma voz clama no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas»

Esta voz de João Batista que clama no deserto é, também, um símbolo de hoje. Pelo menos em dois aspetos: 1) o grito que damos ao olhar um mundo incompleto e insuficiente, carente e ainda violento e injusto; 2) o grito que podemos dar a nós mesmos, quando nos recolhemos e constatamos a nossa própria fragilidade e incompletude. Em ambos os casos, para fora e dentro de nós mesmos, é uma atenção à mudança que marca os tempos de Advento. Endireitar as veredas, começando principalmente pelo nosso interior, é o caminho a fazer, sempre sem auto-culpabilidade e pressão, antes com doçura e certeza de aceitação…

NOTA: Este texto é repetido/ajustado a partir de evento já publicado anteriormente, neste blog

DOMINGO II DO ADVENTO



L1: Is 11, 1-10; Sal 71 (72), 2. 7-8. 12-13. 17
L2: Rom 15, 4-9
Ev: Mt 3, 1-12

JP in Sem categoria 4 Dezembro, 2022

estejam também preparados, porque o Filho do Homem virá quando menos o esperam…

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se  Mt 24, 37-44

«estejam também preparados, porque o Filho do Homem virá quando menos o esperam»

Em linha de partida para o Advento, preparemo-nos para a abertura, sinal maior do treino deste tempo litúrgico. Esta passagem do Evangelho será mal entendida se apreendida como um ‘jogo das escondidas’ de terror. Poderá até ser ‘jogo de escondidas’ (nem tudo se sabe, de facto) mas é daqueles desafios excitantes, a lembrar a infância, em que quando somos apanhados (talvez distraídos, sim) levamos um grande abraço do Pai. É este o jogo do Advento, é o jogo da surpresa, da surpresa da vida. Por ser surpresa, nem tudo se sabe, apenas que é desafiante e que termina com um abraço… já adivinhável… e já vivível…

DOMINGO I DO ADVENTO



L1: Is 2, 1-5; Sal 121 (122), 1-2. 4-5. 6-7. 8-9
L2: Rom 13, 11-14
Ev: Mt 24, 37-44

JP in Sem categoria 26 Novembro, 2022

alegrei-me quando me disseram: vamos para a casa do Senhor

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Slm 121, 1-5

«Alegrei-me quando me disseram: vamos para a casa do Senhor»

O salmo 121 é frequentemente cantado na entrada das celebrações litúrgicas. Nada melhor, quando nos preparamos para a festa no templo de Deus, do que enfatizarmos a alegria que sentimos por esse facto. Um primeiro desafio de confronto com este salmo, para os católicos romanos, seria perguntarmo-nos se as nossas celebrações são e espelham tal alegria… Mas a dimensão da eucaristia, como sabemos, ultrapassa a componente celebrativa. Há que viver a missa “fora da missa”, quando nos oferecemos para ser alimento de amor para os outros. Assim, alegramo-nos quando entramos noutras casas do Senhor: na nossa casa, na casa da vizinha, na casa do café, na casa da escola, na casa dos amigos, na casa do estádio de futebol, na casa do hospital e até, pela graça de Deus, na casa do cemitério… Esta é a ‘missa de todos os dias’ que desejamos.

DOMINGO XXXIV DO TEMPO COMUM



L1: 2 Sam 5, 1-3; Sal 121 (122), 1-2. 3-4a. 4b-5
L2: Col 1, 12-20
Ev: Lc 23, 35-43

JP in Sem categoria 20 Novembro, 2022

aniversário…

De todas as disposições que são inspiradoras nos aniversários tenderia a escolher esta: tenho a idade que tenho de ter…

JP in Sem categoria 16 Novembro, 2022

Tende presente em vossos corações que não deveis preparar a vossa defesa

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Lc 21, 5-19

“Tende presente em vossos corações que não deveis preparar a vossa defesa”

O Evangelho de Lucas que escutamos contém certas recomendações, quotidianas e escatológicas. Na sua pior interpretação, podem ser lidas como ameaças, com algum potencial de amedontramento… Há ainda um enviesamento hermenêutico que conviria evitar: a ideia de um Deus mágico que resolve e ‘cobre’ o que fizermos e o que não fizermos. Pelo contrário, o traço da proposta Cristã é o de contar com a humanidade, livremente mandatada, para a construção do sonho de Deus. Na fé, podemos contar com a confiança de um Deus presente e, por isso, não sermos defensivos na nossa ação e na nossa existência. Para alguns de nós, enquanto Igreja, podemos ter neste texto um espelho crítico sobre as estratégias excessivamente identitárias e defensivas. As trincheiras, a bem dizer, não são a nossa guerra…

 

DOMINGO XXXIII DO TEMPO COMUM

L1: Mal 3, 19-20a; Sal 97 (98), 5-6. 7-8. 9
L2: 2 Tes 3, 7-12
Ev: Lc 21, 5-19

JP in Sem categoria 12 Novembro, 2022

Não é um Deus de mortos, mas de vivos

Na liturgia católica romana deste fim de semana escuta-se Lc 20, 27-38

«Não é um Deus de mortos, mas de vivos»

Os sadoceus colocam a Jesus uma pergunta deveras difícil: qual dos sete irmãos que casaram sucessivamente com a mesma mulher a irá “possuir” depois de morrer. A lógica e a aritmética dos sadoceus tem todo o sentido e é um bom ingrediente para justificar o seu cepticismo quanto à Ressurreição. Jesus apresenta-nos uma ideia diferente, que aponta para uma outra lógica e para um outro quadro de referência depois da morte. Nenhum de nós sabe o que se passará mas acreditamos que esta nova vida que nos espera terá a ver com o Amor, que é o próprio Deus. Podemos experimentar um aperitivo desse encontro, entre-tanto re-velado: já nesta vida, quando estamos a ser construtores do sonho de Deus, em relação com todos os seres humanos e com a natureza. Um “Deus dos vivos”, portanto…

NOTA: Este texto é repetido/ajustado a partir de evento já publicado neste blog anteriormente.

DOMINGO XXXII DO TEMPO COMUM



L1: 2 Mac 7, 1-2. 9-14; Sal 16 (17), 1. 5-6. 8b e 15
L2: 2 Tes 2, 16 – 3, 5
Ev: Lc 20, 27-38 ou Lc 20, 27. 34-38

JP in Sem categoria 6 Novembro, 2022

Posso rezar pelo milagre do fim da guerra?

Paiva, J. C. (2022). Posso rezar pelo milagre do fim da guerra? Site Ponto SJ, 01-11-2022.

Disponível aqui

Já existem no Ponto SJ algumas reflexões sobre esta temática da oração em tempos de guerra, como aquela que aponta para a oração pelo fim dos tiros. Tendo a associar-me aos argumentos apresentados, mas permito-me outro olhar, de alguma forma convergente, como que ampliando a questão: não há milagres pelos quais possamos rezar?

A oração é sempre um tatear. O ponto inicial e constante sobre oração é este mesmo: rezamos toscamente e, como tal, somos apenas aprendizes de oração. Na tradição da Igreja há referências inspiradoras, de experiências místicas e não só, que evidenciam esta fragilidade de partida no gesto orante. A lucidez dos próprios santos sempre os trouxe a este lugar da intrínseca inabilidade da oração. Rezar é uma aproximação com o seu quê de artística: é um dinamismo que resulta da dança dos pincéis que somos na tela branca e livre da doação amorosa de Deus. Neste sentido, o terreno dialético da oração é deliberadamente vago e aberto. A resposta à pergunta que dá título a este pequeno texto é ‘sim’. Na realidade, claro está, podemos rezar pelo que quisermos… Mas para o autor destas palavras, a oração aflita pelo milagre extraordinário, no cenário privado da doença ou no cenário público da guerra, soa a uma certa insuficiência.

O milagre, a teologia e a ciência são uma trilogia complexa e não raras vezes mal entendida e, sobretudo, mal comunicada. Uma das nuances dos milagres, como em subtilezas congéneres, parece mesmo estar no (multi)significado da palavra. Se nos concentrarmos nas definições típicas de um dicionário, a palavra milagre, de alguma forma, apresenta relação com três atributos: 1) causa de espanto; 2) potencial simbólico; 3) evento não explicável no quadro das leis naturais e da ciência atual (ela mesma, ciência, forte e segura mas sempre ‘provisória’. Tenho tendência a valorizar o lado espantoso e maravilhante dos milagres, bem como o seu potencial simbólico. Desvalorizo, pelo contrário, a não explicabilidade (científica?) dos milagres. A não explicabilidade não é o toque de Deus e a ciência é radicalmente provisória… Neste sentido, rezar pelo que espanta, reconhecer o que espanta e ligar-me ao que espanta, parece-me ser um bom caminho.

Há metodologias inspiradoras para rezar, que nos podem ajudar. Sabemos que se pode rezar em todo o lugar, na reserva do quarto, comunitária e publicamente ou caminhando na rua. Importa o corpo e o espírito, sendo que a procura de certo silêncio e abertura interiores são itens de qualidade para a oração. Apesar de rezar ser muito da ordem íntima e por isso pessoal, é bom puxar mais no nós do que no eu. Podemos ainda convocar certa persistência e, com alguma relação de cumplicidade, convém atribuir à oração disciplina, em tempo e espaço inegociável. Gosto de começar e acabar tudo o que diga respeito à oração com o oxigénio do reconhecimento agradecido.

Convoco para esta conversa uma expressão pitoresca: “não me apetecia esta guerra…”. Não sei se ouvi esta expressão tal e qual, mas recordo-me de uma parecida, aquando da pandemia, agora lida como uma espécie de antecâmara em miniatura dos dilemas que a guerra traz: “estou farto da pandemia”. Há um lado natural e até saudável na expressão dos nossos sentimentos e das nossas emoções, na vida, nas relações e, portanto, na oração. A oração, aliás, tem espaço para tudo e, como tal, também para os nossos desabafos. Mas a precariedade (existencial e teológica) desta postura, pode ajudar-nos a iluminar a oração… Auto-centrar-me nas minhas angústias, sem cultivar janelas de respiro, e convocar Deus para me (nos) resolver os problemas operacionais da existência, é uma espécie de “meter deus no bolso” (Bonhoeffer diria que equivocamente procuramos um “deus tapa-buracos”). Não é muito recomendável instrumentalizar a transcendência e a potencialidade e o alcance da oração pendem-nos algo diferente: a abertura que abrimos na oração é um outro e maior horizonte…

Deus teima em apostar amorosa e misteriosamente na liberdade dos homens: uma liberdade que pode tocar, como na cruz de Jesus, a maior das crueldades, a mais cínica das injustiças… E é nesta bebedeira, com clamor e paciência, que a oração se amadura, na paz e na guerra da nossa existência.

Da minha fragilidade orante – reconheço-me numa certa excessividade, a este nível do que peço na oração – encontro-me nem melhor nem pior do que outros estilos de oração cristã. Aponto duas linhas de força sobre a minha miséria de crente rezador: a) já não gasto tempo a chamar à atenção a Deus do que o mundo precisa. Ele sabe bem, endemicamente presente nas entranhas de toda a humanidade. Convoco na minha oração o que vivo, vejo e sinto, mas não preciso de lhe recordar nada… Deus grita e a minha oração é para que eu abra os ouvidos; b) também deixei de rezar por coisas como ‘que acabe a guerra na Ucrânia’. Vou numa outra linha, mais apontada para minha responsabilidade e crescimento e englobando a nossa comunidade. Por exemplo: “que nos abramos à esperança e à generosidade, nas pequenas e grandes coisas, que se gerem contágios amorosos de paz, beleza, solidariedade, esperança e amor. Que eu não perca a força e a coragem de continuar a amar… e assim responda às dilacerantes bombas, as distantes e as que caem perto daqui de onde estou. Que a nossa comunidade, comigo incluído, se abra à esperança, à conversão ao essencial, à atenção… à vida”.

Se me foco, aflito, na urgência milagreira do fim da guerra e perco a noção da grandeza da pequenez, não terei tocado o mistério da experiência de Deus. Se não alcanço o milagre de ver e me alimentar com o detalhe das nervuras dum ordinário trevo, estarei longe do milagre do fim da guerra. Vale a pena poder rezar-vivendo e poder viver-rezando. A guerra da vida, do tempo e do espaço, importa – e eu estou no meio dela. Mas a guerra cuja recruta me chama está cá dentro: e rezar é lutar para aceitar, amorosamente, ser um soldado do sonho amoroso de Deus. A esse milagre acolhido nos candidatamos, por esse milagre rezamos.

JP in Sem categoria 4 Novembro, 2022