Ministério ordenado na Igreja Católica: “mulher não entra”?

   Sem categoria

Paiva, J. C. (2025).Ministério ordenado na Igreja Católica: “mulher não entra”?ulismo e Evangelho. Site Ponto SJ, 06-08-2025. Disponível aqui

O assunto é o acesso feminino ao ministério ordenado da Igreja Católica. O tema já é muito debatido dentro e fora da Igreja Católica e esse é um bom e até esperançoso sintoma, debaixo da espuma dos nossos dias. São conhecidos os mais variados argumentos para ficarmos no mesmo lugar: a tradição (numa visão imobilista e não dinâmica, com toda a certeza); as escrituras (numa versão literalista ou de pesca avulsa interesseira de palavras); a universalidade católica (subtraída de uma verdadeira cultura poliédrica de diversidade); a inoportunidade, face a tantas outras urgências eclesiais (confortável para ir deixando tudo na mesma); o comparativo com outras religiões que, por incluírem mulheres nas lideranças celebrativas, não fizeram crescer o rebanho (transportando um olhar estatístico muito distante da ousadia desconcertante da singularidade numérica dos Evangelhos); entre outros argumentos.

Um dos tópicos mais apresentados pelos resistentes baseia-se na rica dicotomia eclesial Baltazariana: uma Igreja petrina versus uma igreja mariana, coexistindo em complementaridade. Do lado petrino, a segurança, a rocha, a força, a pujança, a testosterona, talvez. Do outro lado, a faceta materna: doce, atenta ao detalhe, sensível, “redondinha” (já agora, de mãos postas, direitinha e obediente). Ora este estereótipo, principalmente do lado mariano, revela sinais culturais que podem sustentar certa crítica e certa inquietude. Talvez o lado feminino, focado, em particular na imagem de Maria, Mãe de Jesus de Nazaré, pudesse ser um outro: mulher resistente, de lenço na cabeça e mãos na massa, pronta a escutar, cuidar, discernir, decidir… e liderar, certamente. Por aqui anda, confesso, no meu horizonte, o perfume inspirador feminino. É uma ironia que não consigo explicar, esta convicção endémica que tenho sobre a forma absolutamente revolucionária com que Jesus tratou (e contou) com as mulheres e o enquistamento do lugar feminino no seio da Igreja Católica. Reconheço as sementes evangélicas e de traço cristão nos bastidores do alavancamento sociocultural da mulher no último século, mas tal potência está muito aquém de germinar eclesialmente.

Sou obvia e reconhecidamente um ignorante em teologia, cristologia e eclesiologia mas, depois de muitas tentativas, não consigo ganhar entusiasmo e conforto racional ou emocional a partir de nenhum dos argumentos que se me apresentam sobre esta espécie de misoginia eclesial. Sendo também ignorante, mas um pouco menos, no que concerne à relação entre ciência e religião, sou tentado a explicitar um aperitivo original para uma analogia que simboliza, a partir do meu ponto de vista, um argumento óbvio de abertura a esta questão. Enuncio assim: se eu validasse os argumentos que sustêm a conservação do não acesso ao sacerdócio feminino, invalidaria, por arrasto, a boa compatibilização entre ciência e religião. Este não é o fórum certo para desenvolver o tema, mas o que fui lendo e meditando sobre a natureza da ciência e sobre a natureza da religião leva a um lugar óbvio: ciência e religião só serão compatíveis entre si com um primado inegociável de não literalidade bíblica, de dinamismo epistemológico e de abertura sem pré-conceitos rígidos. Os mesmos pressupostos, trazidos para a discussão em causa, eliminam qualquer razoabilidade dos argumentos que sustentam o fechamento às mulheres ao ministério ordenado.

O concílio Vaticano II, tão inspirador e ainda tão distante no protagonismo católico, ofereceu-nos uma forma (re)novada (não nova, porque está no “velho” Evangelho): o mundo e os seus sinais são um bom espelho para nos entendermos, relermos e agirmos. No que diz respeito ao feminino, esse reflexo está por projetar: da geografia cultural onde me encontro, o espaço da mulher na Igreja é, para usar poucas palavras, culturalmente insuportável. A Faculdade de Ciências onde trabalho é (muito bem) liderada por uma mulher. Por que raio de argumentos poderíamos impedir, hoje, uma mulher de ter liderança académica instituída e efetiva? Poderão dizer-me que a Igreja é coisa maior (ou será ‘menor’, no bom sentido do termo?) mas não se consegue entender esta originalidade da Igreja.

Está claro que o ministério ordenado é um serviço e que jamais seria um fim em si mesmo – muito menos uma reivindicação – para qualquer mudança na Igreja. Mas esta cerca ao feminino é sintoma profundo de algo que não está bem. Como ganharíamos todos, homens e mulheres, se tivéssemos mais e mais rasgadas portas para partilhar e assim receber a sensibilidade feminina colhida dos Evangelhos e celebrada na nossa fé comunitária.

Valha-nos, entretanto, o acompanhamento espiritual feminino, que está canonicamente enquadrado e vai sendo, aquém do possível e desejável, realizado em Igreja. Oxalá, no mínimo, possa constituir-se num mais robusto e institucionalizado ministério eclesial, então também liderado no feminino.

Pergunto-me como realizará, hoje, uma jovem adolescente da nossa cultura ocidental este nó patriarcal? A maioria das minhas amigas católicas acompanha-me, genericamente, neste argumentário. Mas a sua história com os Evangelhos e com a Igreja já teve positiva sedução vinculativa e deu lastro a uma pertença, crítica, mas fluente e fiel. Será assim com gente mais nova?

Tenho esperança na sinodalidade como processo de ser Igreja e estou disposto a pagar o preço da lentidão deste avanço. Mas reconheço perigos imobilistas.

Para algumas pessoas dentro da Igreja, ou menos preocupadas com este assunto, ou ainda instaladas na ideia de que pouco importa esta questão, o acesso feminino à liderança ministerial católica é não só difícil de abordar, como também inconveniente e, sobretudo, irrelevante. Será mesmo assim?