Populismo e Evangelho
Paiva, J. C. (2025). Populismo e Evangelho. Site Ponto SJ, 14-10-2025. Disponível aqui
Recentemente escrevi no jornal Público um artigo intitulado “cultura científica e populismo” onde explanei os aspetos que, em meu entender, colocam em rota de colisão o populismo sociopolítico vigente e a cultura científica.
São impressionantes as não-sintonias do discurso e da prática populista com o modus faciendi da ciência. No populismo – e em contraste direto com a Ciência, temos: 1) a hipervalorização das perceções, em detrimento da realidade, tal qual ela é, incluindo a sua complexidade; 2) o lastro de senso comum agudo, que impede profundidade de análise; 3) a insignificância da experiência como suporte das afirmações; 4) a irrelevância da matemática e do bom tratamento dos números, particularmente dos conceitos de probabilidade e estatística; 5) o alheamento da consensualidade e da abertura na construção das ideias; 6) o ataque invasivo à liberdade de pensamento verdadeiramente não condicionado.
Até este ponto não invocamos nenhum argumento que convoque o sentido cristão. Bastaria o lugar humanista para nos colocar, no mínimo, atentos às aparências de bem do populismo. Mas alguém que trabalhe na área científica e seja cristão há de somar aos argumentos acima o pináculo principal: o populismo choca de frente e sem cerimónia com o Evangelho.
O tutano inspirador da fé cristã reside no amor ao próximo, que se abre numa universalidade sem rótulos e sem sectarismos. É o oposto da defensividade e do poder de excluir, é o hino do serviço a todos, do abraço e do acolhimento. No rasto judaico-cristão, perde o pé quem não se recentra constantemente nas grandes perguntas: ‘o que fizeste tu ao teu irmão?’, ‘quem é o teu próximo?’. O populismo, na sua génese, potenciado pela superficialidade panfletária, é a secundarização destas perguntas, ironicamente disfarçado, muitas vezes, de religiosidade duvidosa.
Podemos admitir, olhando para o mundo e em particular para a Europa e para o nosso país, que faltou e falta pragmatismo à relação com os migrantes. A gestão possível da pólis, a política, portanto, terá de ser minimamente, ou maximamente pragmática e apurar as reais possibilidades de acolhimento, as leis mais realistas, as fiscalizações inevitáveis, as iniciativas de combate ao tráfego humano e todos os mecanismos para lidar com este complexo problema, que não tem sem soluções simplistas. Mas ao cristão será pedido que toda a visão, toda a “opinação” e principalmente toda a ação sejam feitas de Evangelho na mão, isto é, com os critérios amorosos de um tal Jesus de Nazaré. Notar que este ‘Evangelho na mão’ é radicalmente metafórico. O que quero dizer com Evangelho na mão não é mostrar nem içar publicamente o dito livro: é ser o Livro, é viver e assim continuar a dizer o que lá está, em gestos ‘imitadores de Cristo’.
O que me parece faltar ao discurso populista de muita gente, com quem paradoxalmente me cruzo, também, nos corredores da Igreja Católica Romana, é a lembrança da compaixão e da misericórdia. E sem esse recentramento no cerne do alvo crístico, não há cristianismo que nos valha. Podemos nós esquecermo-nos, envolvidos nas vestes religiosas, do amor desmedido de Jesus de Nazaré, esse estrangeiro, que morre amorosamente na cruz e (nos) liberta na ressurreição amorosa dos mais frágeis, que somos todos nós?
Não consigo deixar de convocar, a propósito desta temática, algumas experiências que fui tendo com pessoas estrangeiras, em variados contextos. Foram principalmente marroquinos, senegaleses, malianos, etíopes, ganeses, todos de tecido islâmico, com quem me cruzei no Sul de Itália, por “convocatória” do Papa Francisco. Com esses, comi, convivi, escutei, joguei, abracei. Toquei, ainda que minimamente, a sua dor, a sua procura e a sua angústia. Foi pouco e pequeno, mas esse toque libertou-me de julgamentos sectários. Mas também, em diversas campanhas, com sírios ou com ucranianos, já na lusa pátria, acolhendo em casa, pude sentir-com, partilhar, cruzar a minha vida e o meu olhar com as suas vidas. Estas experiências são cruciais para o lugar que o estrangeiro ocupa no meu universo. Somo a essas experiências o privilégio de, desde jovem, ter viajado e me ter cruzado e entrecruzado com gente de muito sítio. E acrescento ainda, que não quero esquecer, o meu Pai e o meu Avô – e certamente quem os precedeu – já foram estrangeiros. Como sempre, a experiência ou a falta dela, corroboram os ideais. Arrisco escrever que o que me parece faltar a muitas colocações populistas na relação com os estrangeiros é o convívio mais íntimo com o outro-diferente.
Curiosamente, em todas estas experiências que elenquei, reconheço ingenuidades pessoais, logísticas e até políticas. Não é o lugar certo para detalhar, mas sei bem que podemos ser mais eficazes a acolher, mais organizados e até mais astutos e menos ingénuos. Podemos combater as redes de tráfego que minam as legítimas fugas em procura de um melhor presente e de um melhor futuro. Mas essa lucidez de ação sociopolítica e logística não pode sombrear nunca, nas palavras e na alma, o perfume da compaixão, o cheiro da fraternidade universal que não só nos completa, mas que também nos identifica como cristãos. É essa a bandeira crística, a da fraternidade, não outra.
O primado porventura mais subtil – talvez também mais rasteiro – do populismo, é a primazia do eu ou do ‘nosso grupo’ em relação ao nós aberto e universal. Quem reza “Pai Nosso” não reza nem pai meu, nem pai de pessoas selecionadas. Ironicamente, o eixo do eu, o eixo ‘dos nossos’ é o primado da guerra, da pequena e da grande guerra. A mistura do populismo com a coisa religiosa gera, precisamente, a guerra santa. A história mostra-nos bem os lugares das guerras santas e a forma como Jesus e o seu Evangelho são a antítese dessas batalhas.