O Fascínio de Ser Professor

   Educação Livros

Livro editado pela Texto Editores

Referência: J. C. Paiva, O Fascínio de Ser Professor, Texto Editores, Lisboa, 2007

Para adquirir o livro contactar: https://www.leyaonline.com/pt/livros/ciencias-da-educacao/o-fascinio-de-ser-professor/

Nota: neste blog, pode haver pequenos textos constantes do livro, com etiquetas, disponibilizados ‘avulso’.

 

O Fascínio de ser Professor é, em certo sentido, uma conversa informal com o leitor. Com algum tom autobiográfico, o autor João Paiva, aborda vinte “pólos educativos”, posicionando-se (moderadamente) face a dicotomias como razões/afectos, autoridade/diálogo ou palvra/imagem. O prazer de estar em palco no teatro da educação é a seiva destas palavras. A par das reflexões e sugestões, relatam-se experiências do autor enquanto professor de química. A química é um agradável álibi: haja o que houver nas escolas e nas reformas educativas, o fascínio será sempre a mola do professor. O fascínio vai além de um jogo de pólos. O fascínio é o eixo que faz mover a escola e, assim, anima o mundo.

 

índice:

Introdução

Razão / Afectos

Saber Ciência / Saber Ensinar

Estratégias tradicionais / Computadores

Conceitos / Contextos

Sacrifício / Prazer

Compartimentação / Aptidões transferíveis

Rigidez / «Negociação»

Autoridade / Diálogo

Elitismo / Ensino de massas

Dissimulação / Transparência

Memorização / Criatividade

Professor / Aluno

Rigor / Transigência

Sala de aula / Outros espaços

Complexidade / Simplicidade

Teoria / Prática

Exames / Avaliação contínua

Palavra / Imagem

Ajuda / Autonomia

Pessimismo / Optimismo

 

Exemplo:

1. Razão / Afectos

Se nos critérios do passado «um homem não chora», seria também anunciável que «um professor não sente». A racionalidade «higiénica» terá movido a teoria e a prática das escolas: professores e alunos, firmes e hirtos, de ambos os lados da barricada da educação, durante muitos e longos anos.

Em alguns excessos do presente das nossas escolas, porém, joga-se a confusão afectiva oposta: falta racionalidade e a distância crítica dos professores, das gestões escolares e da tutela ministerial para actuar com firmeza nas muitas situações que o exigem.

Não obstante ter uma atitude de horizonte afectivo, humanista e, em certo sentido, progressista, assumo que, em educação, prefiro um sistema mais tradicional, mas seguro e coerente, do que um sistema «prá frentex», mas inconsistente, frágil e inseguro. No diálogo entre o «prá frentex» e o «prá trasex», deveria imperar o pragmático e o realista. Escolhi com a minha mulher, para os nossos três filhos, escolas com um modelo educativo de natureza tradicional. Foi melhor para uns do que para outros, mas, em geral, não estamos arrependidos. Entre a certeza de algumas competências (e exigências) mais rígidas e a dúvida de sistemas mais modernos, preferimos a primeira. Não foram «o pleno», mas o possível. Desejava um modelo misto, em que convergissem os critérios salutares do ensino tradicional, como a exigência, o rigor, a disciplina e o trabalho, com ingredientes mais inovadores e de estilo moderno, como a criatividade, o jogo, a transdisciplinaridade e o trabalho de projecto.

Na ausência de tal «padrão médio», da «fusão feliz» em que pretendo colaborar e que profissionalmente procuro protagonizar, optei por «ter o pássaro na mão». Continuando com os provérbios, achei que «não se fazem omeletas sem ovos». Não se criam textos sem conhecer as palavras, nem se é criativo matematicamente sem saber a tabuada de cor. Achei que aprender deve e pode ser agradável, mas que sem «sangue, suor e lágrimas» não se consegue aprender. Achei que queria os meus filhos felizes na escola, como na vida, mas era claro que felicidade não equivaleria a facilidade. Entendi que, na ausência do tal modelo equilibrado, era melhor proporcionar aos meus filhos bases cognitivas sólidas, apesar de pouco flexíveis, abrindo o horizonte dos afectos em casa, do que arriscar o vazio cognitivo de hábitos de trabalho que teriam de ser compensados, em casa, desgastando a relação paternal. Preferi mais «letras e números» na escola e mais afectos em casa do que o contrário: «marmelada» na escola e «luta cognitiva» em casa…

É certo que nem todos os pais têm, por vários motivos, esta possibilidade (na qual acredito e experimentei positivamente, mas que não posso generalizar…). Assim, continuo a lutar e a aspirar construir espaços educativos equilibrados, onde o rigor se mistura com os afectos e a exigência anda a par da compreensão, onde as regras existam, mas se projectem na atenção personalizada, onde a disciplina na sala de aula não trave alguma «festa».

O professor, ele próprio, para mim, deverá ser este «dois em um», promovendo atitudes e comportamentos tradicionais, misturados com outros mais inovadores, infelizmente ausentes na escola dos nossos avós. O mesmo professor que faz «o pino» ou conta uma anedota deve manter o silêncio na sala quando necessário; que passa trabalhos de casa todos os dias, mas que ri e chora com os alunos; que anula um teste copiado, mas que compreende profundamente cada aluno…

Talvez pela opção pessoal que fiz de recorrer a uma educação mais tradicionalista dos meus filhos na escola e fazer por «arredondá-la» em casa, adopto (e faço por praticar) alguma radicalidade de «negociação», inspirada em ideias da inteligência emocional (talvez mais fáceis de protagonizar em casa do que na escola).

Convém não confundir esta «negociação», de que falaremos mais adiante nas questões disciplinares, com troca ou compra de favores. Trata-se de promover o diálogo e gerir cedências, misturando, sim, o que é racional com o que é afectivo. Se um professor decidir dar um teste num determinado dia, mas os alunos não acharem tal dia favorável, por que não colocar argumentos, opiniões e alternativas sobre a mesa e, procurando ceder no que for possível, encontrar uma data consensual? Impor uma ideia só porque «quero, posso e mando», pelo facto de ser professor, raramente é o caminho certo. Às vezes, porém, quando está em causa a segurança própria e/ou dos outros ou a liberdade de terceiros, aí sim, com toda a firmeza, por mais «pena» que haja, exerça-se a autoridade. Em muitos casos a que se chegou ao ponto de usar grande autoridade, perderam-se oportunidades «negociais» anteriores, de firmeza prévia. Ilustro melhor com um exemplo: o aluno que foi alvo de um inevitável processo disciplinar por agredir um professor, começou há muito a sua escalada. Não teria ido tão longe se, quiçá na primeira aula, tivesse ouvido o que devia e/ou, num jogo de futebol envolvendo professores e alunos, por exemplo, se tivessem gerado empatias…

Thomas Gordon1 sugere uma tolerância radical e uma «tensão negocial» com os filhos que considero eficaz, quando ela é possível. Os mais críticos da linha de Gordon têm medo da falta de regras e ridicularizam as suas teses, anunciando algo que não é verdade: que o «negocial» impede a regra e que deixa de haver balizas. Há balizas, sim, as tais da segurança (criança sem cinto de segurança não viaja, por exemplo) e da liberdade de terceiros (não há margem negocial para jogar basquetebol num apartamento porque se incomodam os vizinhos). Mas, aquém das traves da baliza, nem sempre fáceis de discernir, há uma margem para diálogos e cedências que importa esgotar.

Gordon refere que, muitas vezes, à tirania dos professores e dos adultos enquanto pais (o que ele chama «Método I»), se opõe o não menos mau Método II, que é a «tirania das crianças ou dos alunos». Ele aponta-nos o Método III, baseado na referida negociação, conhecido pelo método «sem vencidos nem vencedores».

Gordon advoga que o seu modelo é aplicável na escola2, mas estou para ver, salvo excepções muito pontuais, esse modelo realizado. A complexidade social e a problemática transversal da escola são malhas difíceis. Tenho três filhos, as turmas têm 30 alunos, as escolas mais de 300. Por isso, tolero em casa o que talvez não pudesse tolerar na escola… Por isso, tenho de recorrer a estilos mais autoritários, duros ou punitivos na escola. Com os filhos, tal estilo pode bem ser um «tiro no pé», hipoteca do progresso da relação. Debaixo do telhado de casa a negociação participada e dialogante é sempre o melhor caminho. Na escola também seria, mas o tecto é demasiado grande e as histórias pessoais de cada aluno são muitas e muito complexas… E o trabalho com os alunos exige abertura dos próprios educadores, que apresentam, tipicamente, alguma resistência.

Nesta discussão, percebo o verdadeiro alcance de uma máxima: «A escola deve ser uma família». Quero até, na medida do possível, ser agente participante da sua construção. Até estar construída esta escola-família (talvez nunca…), há que criar condições para que, quem quiser, possa aprender.

Por isso, advogo que, esgotados os critérios e atitudes razoáveis e «pacíficas» para se criarem ambientes coerentes com a aprendizagem, se usem sem cerimónia os instrumentos disciplinadores que permitam que «aprenda quem quer aprender».

Os afectos podem também entrar nas próprias explorações dos conteúdos propriamente ditos. A maioria dos jogos que concebo ou uso nas aulas possui, sempre que possível, uma natureza afectiva, envolta em racionalidade. A Segunda Lei da Termodinâmica pode ser assim enunciada: a entropia de um sistema isolado aumenta. Numa abordagem qualitativa, podemos associar à entropia o grau de desordem dos sistemas. Entendemos aqui os conceitos de ordem e desordem na sua acepção mais simples. A realidade é mais complexa: fala-se de distribuição em microestados, etc. Dizer que a entropia está a aumentar é dizer, em certo sentido, que a desordem está sempre a aumentar. Os alunos estranham tal, pois observam transformações espontâneas com aumento de ordem, como a formação de cristais (partículas que ficam agregadas e organizadas a partir da situação de dissolução em água), ou a própria formação de um bebé (hino da organização celular). Porém, a segunda lei não afirma que num dado sistema a entropia não possa diminuir (aumento de ordem). Fala de um sistema isolado. Então, se sistemas se organizam é porque as suas vizinhanças se desorganizam, de tal forma que, no conjunto «sistema e vizinhanças», de facto, a entropia (desordem) aumenta. No caso dos cristais, as moléculas de água podem desorganizar-se no processo de formação do cristal. No caso do bebé, podemos dizer, em tom de brincadeira, que, na vizinhança da gravidez, o desgraçado do marido se desorganiza fortemente ao ir comprar requeijão às 3 horas da madrugada… Diz-se que a Segunda Lei da Termodinâmica nos dá «a seta do tempo», o que é bem curioso, pois a ciência responde assim a uma pergunta que um filósofo tem grande dificuldade em encarar: o tempo é aquilo que aumenta quando a entropia aumenta. Por outras palavras, hoje é hoje e não é ontem, porque há mais desordem no universo. E ontem era ontem e não hoje porque ontem havia mais ordem.

Pode intrigar-nos por que estará a desordem dos sistemas a aumentar, mas a resposta é bem simples: a desordem é mais provável do que a ordem. A propósito da Segunda Lei da Termodinâmica, costumo usar uma simulação, desenvolvida por mim e por outras pessoas, que apresenta uma espécie de jogo de flippers (Figura 1), com uma caixa bi-compartimentada, que explicarei de seguida.

O objectivo deste jogo é colocar as bolas, que se movimentam aleatoriamente, num dos compartimentos (A ou B), imprimindo ordem ao sistema. O jogo simula o chamado «demónio de Maxwell» que é uma «curiosidade científica»: este demónio não existe na realidade, mas pode ser representado no computador. Intervindo num sistema, pode criar ordem, contrariando a Segunda Lei da Termodinâmica. Com o demónio de Maxwell, o aluno pode «fintar» esta lei. Consegue ser demónio se fizer o que o universo abandonado a si próprio nunca permitiria: baixar o «entropímetro» («invenção virtual» nesta simulação para medição de entropia) ou aumentar a ordem de um sistema isolado.

O professor autoritário, que está «hirto» e não sorri, que faz da sala um quartel, parece ter pouco futuro. Está parado no tempo e não se deixa «desorganizar» minimamente, contrariando a «Segunda Lei da Termodinâmica Pedagógica». Mas, por outro lado, o professor que se equipara de forma infantil aos seus alunos, sem distância crítica e sem bom senso, não passa de um «bom rapaz». O professor fascinado, entretanto, usa com peso, conta e medida a razão e os afectos e concorre com ambos para promover a aprendizagem dos seus alunos.